20091028
a eficácia do galo e do caldeirão
uma das grandes curiosidades da comunidade de estudiosos do terrorismo jihadista é a de tentar descobrir as causas da eficácia do galo, isto é como é que o Estado francês consegue controlar os seus jihadistas, ao ponto de não ter ainda ocorrido um atentado em França, e das várias operações executadas terem sido anuladas. Na verdade, com 5 milhões de cidadãos muçulmanos, 8 por cento da população, maioritariamente de origem argelina e marroquina, entre os quais se encontram células e organizações jihadistas, com maior ou menor ligação à Al qaeda central, e aos jihadistas nos países de origem, parece forte a possibilidade de o território francês ser vulnerável a atentados. No entanto, até ao momento, não é isso que tem acontecido. Vários estudos, especialmente de Olivier Roy, mostram algumas causas da eficácia do galo. Antes do mais, ao contrário do sistema de multiculturalismo adoptado pelo Estado britânico, os franceses tentam que todos os seus cidadãos partilhem dos valores seculares da república e se sintam franceses. Depois, a esses mesmos cidadãos franceses de etnia não europeia, uma vez integrados nos valores democráticos, republicanos e patrióticos, é dada a oportunidade de servirem o Estado, nos vários serviços de segurança. O escudo do galo tem duas camadas: da sociedade francesa fazem também parte os muçulmanos de origem étnica árabe, o conhecimento das comunidades étnicas, porque obtido por cidadãos que a elas pertencem, é elevado. Uma mesma experiência, em menor escala, foi concretizada com êxito em Nova Iorque, como relata Dickey numa investigação recente. A polícia de Nova Iorque sabe que nunca teria êxito contra as comunidades jihadistas locais se não as penetrasse com elementos muçulmanos. Lançou um concurso interno para o recrutamento de muçulmanos com domínio de línguas árabes, ao qual responderam centenas de agentes. A CIA e o FBI tinham tentado o mesmo, com fraca adesão. A razão é simples: a polícia de Nova Iorque é um espelho do caldeirão étnico da sua cidade, a CIA e o FBI representam o elitismo wasp.A eficácia do galo e do caldeirão deviam fazer reflectir o Estado português, do ministério da Educação ao da Administração Interna. O esforço de integração na sociedade, das escolas à entrada na função pública, das várias etnias tradicionais e recentes fixadas em Portugal é quase inexistente. E num dos sectores onde a presença e o saber de elementos integrados das minorias étnicas é fundamental, o da segurança, o estado português, mais por inércia do que por preconceito, é mais elitista do que a CIA e o FBI. O seu escudo, ao contrário do francês, não é de titânio.
20091027
o MI 5 dita o caminho
Está já nas bancas globais e virtuais a história dos 100 anos do MI5, o serviço de informações internas do Reino Unido. O projecto foi executado nos últimos anos pelo historiador de Cambridge Christopher Andrew (que entrevistei em 1995, sem grandes emoções para relatar, a não ser ter de correr atrás da sua bicicleta, de gravador no ar, para as perguntas finais), com a total colaboração do MI 5, isto é a abertura total dos arquivos, com a excepção da reserva de fontes ainda fundamentais ou de operações não concluídas. Andrew, que trabalhou de modo totalmente independente, cobre toda a actividade do MI 5 até aos nossos dias, incluindo os temas mais sensíveis: toupeiras soviéticas nos serviços britânicos, o conflito na Irlanda do Norte, o contra - terrorismo contra a acção jihadista. O projecto, que assinala os 100 anos do MI 5, partiu do próprio director do serviço em 2000, Stephen Lander. O MI 5 é o primeiro serviço de "intelligence" ocidental a abrir os seus arquivos da actividade contemporânea, e invoca duas razões principais para o fazer. A primeira é a de corresponder, na medida do possível, ao princípio da transparência democrática. A segunda é a de a partir dessa transparência ganhar o apoio dos cidadãos, sem o qual, confessam os responsáveis do serviço, não será possível ter uma acção eficaz contra o terrorismo e o crime organizado. A operação transparência lançada pelo MI 5 deveria fazer pensar um pouco os responsáveis pelo edifício de segurança português, esse alvo da desconfiança, desprezo e ódio dos cidadãos.
20091025
a memória não guarda todos
A memória não guarda todos. Quando os guardadores dos passados que em algum momento foram comuns se reúnem, e cruzam as memórias do que partilharam, há sempre alguns que não são trazidos das sombras. Ficam abandonados nesse passado, como se não tivessem existido no presente invocado tão distante. O que poderá ter acontecido para que assim seja é um mistério. Na maior parte dos casos, é um mistério sem nada de grave. Os desaparecidos para sempre foram apenas aqueles que nunca saíram do seu quotidiano silencioso e retirado, ou talvez com vidas demasiado ricas que lhes tornavam desnecessárias novas pertenças. Mas, sendo com toda a probabilidade essas as explicações, há, ao mesmo tempo, qualquer coisa de muito triste neste desaparecimento à partida que se prolonga sem alterações no futuro. Não ter sido conhecido, não ter marcado alguma coisa em alguém e ter sido marcado por outro alguém, não ter construído um ponto comum de passado, pode poder ser uma solidão pesada. Mesmo que nada de errado determine hoje o percurso dos desaparecidos, eles nunca terem existido nos outros é uma escuridão que não se suporta.
20091024
a leitura cirúrgica de J.G.Ballard
J.G. Ballard tem tudo para ser considerado um ficcionista menor. Os seus enredos narrativos são fragmentados, limitados e pouco coerentes, e as suas personagens são construídas a traço grosso, ficando por idealizações sem profundidade. Mas, pessoalmente, Ballard é dos autores que mais me acompanha e que, continuamente, sem razão aparente, me encaminha para questões e ideias para as quais não encontro destino. Levei algum tempo para conseguir entender este paradoxo pessoal. Numa ordem ascendente arbitrária, eis algumas causas não definitivas do problema. Ballard, como um número importante de ficcionistas ambiciosos, é um teórico deslocado. Tem aquela capacidade dominada por poucos de conseguir dobrar a linguagem ao serviço da teoria, isto é de numa frase de duas ou três linhas partilhar conceitos que iluminam de modo total actos ou pensamentos que temos mas não conseguimos racionalizar, e muito menos comunicar. Inúmeras vezes, por respeito à nobreza do objecto livro,me senti menos culpado por as minhas edições de Ballard serem "paperbacks" e a dobragem, por vezes múltipla, dos cantos das folhas, com o objectivo de no futuro manter a memória do lido, não ser, teoricamente, considerado um crime maior. A passagem, e recolha dos traços fundamentais, pelos recantos mais sombrios da mente humana, aqueles totalmente afastados do mal "mainstream" em que todos somos peritos, como os "serial - killers" ou os violadores, é outra importante marca ballardiana. Como "Crash" e "The Atrocity Exhibition", para invocar dois títulos, mostram, o ficcionista, que só por resignação à burocracia do mercado aceitava o ser incluído no género ficção científica, é dos poucos certificados a percorrer territórios que a nossa imaginação comum e moldada na mediania não consegue sequer conceber, e que são domínio inacessível de uns poucos que raramente circulam na visibilidade pública. A leitura cirúrgica da realidade contemporânea, feita de modo incansável ao longo de décadas e sempre sem falhas, completa a fixação de Ballard no lugar dos fundamentais. Ballard realiza o processo com o recurso a duas operações, que se entrelaçam, a da extracção contextualizada dos traços decisivos, e a da sua passagem a um texto ficcional. Na primeira operação, Ballard consegue isolar os componentes estruturais de pedaços da sociedade contemporânea, que a maioria de nós comuns conhece e desconfia da importância, mas sobre os quais consegue obter informação apenas vaga, e conhecimento deficiente. É o texto de Ballard a fonte privilegiada que nos consegue fazer aceder aos mecanismos internos do império cultural global da televisão por cabo, do centro comercial e das claques de futebol ("Kingdom Come"), à cultura empresarial e aos seus espaços soberanos que a democracia não controla ("Super Cannes"), e ao mal indefinido e insignificante da classe média urbana ocidental cuja revolta é o espelho da sua mesquinhez ( "Millenium People"). Na segunda operação, o texto ficcional de Ballard, por sua vez, consegue transformar aquilo que nas páginas ou nos pensamentos produzidos por nós comuns são apenas observações empíricas, dados científicos frágeis e hipóteses teóricas em construção numa história cujo poder é o de nos dar conhecimento límpido sobre realidades contemporâneas complexas que nos moldam e determinam. Ter o texto Ballard é, assim, ter por perto um manual superior de ficção, mas também, para quem se envolve em trabalhos de ficção, a recordação contínua de um desafio crítico. O de conseguir aplicar o modelo Ballardiano a realidades específicas portuguesas.
20091023
a carrapateira vai à rede
O nó central de um dos últimos paraísos na Europa, o sítio da Carrapateira, na Costa Vicentina, tem já na rede um site comunitário, que estará totalmente operacional em Janeiro do próximo ano. O site, e outros esforços de transformar os habitantes do local numa comunidade, partiu de uma ideia de um casal flamengo, Koen e Hilde, há muito residente na Carrapateira, e de alguns pares seus com vontade de concretizar projectos. A Carrapateira tem tudo para ser uma comunidade exemplar e um projecto social e económico de elevado sucesso. A população é reduzida, o que facilita a eficácia do debate e da decisão, o local é maravilhoso, as possibilidades de acção micro - empresarial são múltiplas, todas elas ecológicas, ligadas ao mar e à terra. No entanto, até agora pouco aconteceu. Na década que levo já de anualmente demandar à Carrapateira, um dos exercícios que realizo sempre é o de me sentar de madrugada no café da praça, e tentar imaginar a Carrapateira ideal, um pouco como o bom do Tyler faz semanalmente no "Financial Times" em várias paragens do mundo, com mais talento do que eu. A primeira coisa que eu fazia era criar uma marca para o local. O logo "Karra", juntamente com um lagarto vermelho, uma criação de um jovem franco - português talentoso natural da Carrapateira, seria o meu escolhido. E obviamente a "Karra" estaria em todo o lado do sítio, especialmente nas lojas e nos acessos rodoviários. Depois, pegando em um dos vários "chefs" que hoje felizmente dão consultadoria, criaria "menus" comuns ou complementares entre os vários estabelecimentos de restauração do local, para que a oferta cobrisse pequeno - almoço, brunch, almoço, cocktail hour, jantar e "after - hours". Aliás, a partir desta base criaria um serviço de pequenos - almoços ao domicílio e "beach lunch" que tanta alegria daria aos veraneantes. A opção dos menus comunitários tem, acima de tudo, para mim, objectivos empresariais. Antes do mais, permitiria aos empresários da restauração uma logística integrada, com as inerentes poupanças. Depois, iria garantir a difusão da marca, nos cestos e outros objectos usados na distribuição dos pequenos - almoços e beach lunch. Mas, finalmente, permitiria também a ocupação de alguns idosos, na concepção e fabrico de objectos locais, como cestos, para a distribuição da papinha. Bem oleado este sistema, avançaria depois para serviços e sinergias. Logo de partida, um serviço de "baby - sitting" flexível, que daria trabalho a adolescentes e adultos desempregados. Depois, um transporte de grupo regular para as praias, que eliminaria o problema ecológico das viaturas privadas nas dunas e na areia. Já nas sinergias, parece - me por demais óbvio como todos poderiam ganhar: os alugueres de casa no local garantiriam "vouchers" nas escolas de surf locais e "happy hour" nos bares, e vice - versa, isto é, por exemplo, um curso de "surf" daria desconto no aluguer. Mas o que realmente me entusiasma é que a Carrapateira tem um potencial enorme para escapar à monotonia da oferta radical e ecológica. Os pescadores reformados poderiam fazer passeios nos seus botes e explicar as suas artes, os agricultores poderiam organizar visitas às suas produções e vender directamente os produtos. Numa síntese imperfeita, o que eu vejo é um projecto de grande beleza e sustentabilidade. Há só um pequeno problema: E como é que se gere isso tudo? Exacto, esta é a minha maior ambição. Na minha imaginação, a Carrapateira seria gerida por um conselho democrático de habitantes, que, exactamente, soubesse lidar com o conflito e fosse capaz de o resolver, e que substituísse a habitual inércia e cinismo do poder autárquico. Claro que para isto o conselho e os habitantes teriam que perceber a natureza de uma comunidade. Claro que sim.
20091022
uma detenção esquecida
o trabalho genial de João Abel Manta voltou à superfície, desta vez devido ao olhar atento dos curadores da exposição Anos 70, nas paredes do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Num canto um pouco periférico, estão alguns dos esquecidos, ou submersos, de Abel Manta, especialmente a série "Detenção". O artista recorre a vários imaginários - dos Private Eyes do "film noir" americano aos homens da Gestapo nazi - para criar uma série de duplas policiais que cerca cidadãos que personificam o medo que a sociedade portuguesa da altura tinha da PIDE, a polícia do Estado ditatorial. Há vários traços com que a série encanta o observador, mas o mais grosso é o desenho das personagens, levantado e finalizado num processo que ignora todas as fronteiras estéticas e conceptuais, principalmente aquela entre a banda desenhada e o cartaz político. Abel Manta consegue dar a exacta dimensão do medo português antes de 74, mas também provocar uma estranha alegria trazida pelo humor. Assim sendo, porque esta é então uma obra rara, parece obrigatório que a mesma esteja visível.
20091021
da visibilidade dos pedaços do terreno
Sudhir Venkatesh é um sociólogo americano hoje mais conhecido pela sua participação em "Freaknomics" e pela partilha que fez dos seus métodos de investigação etnográfica ("Gang Leader for a day"), que, aliás, é um excelente manual de reportagem em qualquer lado do mundo. No entanto, é a sua tese de doutoramento ("Off the books: the underground economy of the urban poor") que contém dados extremamente fascinantes. Venkatesh dedicou-se a estudar, durante um trabalho de terreno prolongado no tempo, uma comunidade de um bairro pobre de Chicago - formada por desempregados, padres, toxicodependentes, membros de gang, operários com pequenos negócios, e hustlers (tradução próxima: intrujas) - procurando conhecer e entender os seus modos de sobrevivência. Os dados obtidos no terreno permitem traçar um sistema económico e social baseado em micro empresas clandestinas - do mecânico do vão de escada à avó cozinheira - de actividade continuamente instável, e dependente de relações de confiança das quais frequentemente se ausenta qualquer tipo de garantia.Toda a actividade social e económica desta comunidade é realizada nas ruas. É aqui que o olhar etnográfico de Venkatesh revela toda a sua capacidade. O que ele leva o seu leitor a descobrir são ruas revistas pelo poder do conhecimento. As ruas deixam de ser cópias que costumamos consumir na ficção cinematográfica - com homens à esquina, hustlers encostados às montras e todo o resto do cenário - para passarem a ser pedaços de terreno onde o posicionamento de cada um tem um sentido e um objectivo. E a luta pela posse de um pedaço estratégico de terreno é a maior causa de conflito na comunidade. A desocultação feita por Venkatesh é um exercício de domínio da paisagem geográfica e social que faz inveja a qualquer investigador.
20091020
algumas indetectáveis dimensões da realidade
Ao ficcionista importa também, a par de outros desígnios transcendentes igualmente nobres, conseguir trazer para o seu texto algo que seja importante na contemporaneidade que o cerca. A tarefa tem um grau denso de dificuldade, porque o que realmente pode ser decisivo é muitas vezes indetectável. Na verdade, é sempre possível ficcionar sobre o que é de fácil apreensão - os traços e enredos dominantes - ou, claro, improvisar a partir do olhar próprio. Mas entender as dimensões decisivas da realidade contemporânea poderá ser um pouco mais crítico. A investigação jornalística pode ser um bom ponto de partida, e a investigação académica, quando não ignora o trabalho no terreno, é igualmente uma boa base de aprofundamento. No entanto, fica sempre uma parte do objectivo para cumprir. Conhecer e ganhar a confiança daqueles que possuem a informação, num primeiro momento, pesar esta última após a sua posse, e, deixado o tempo cumprir o seu papel em paz, moldá - la a personagens e a uma narrativa aceitável, é um grande desafio. A partir da realidade portuguesa o desafio é ainda maior, não só porque quase tudo do que importa é indetectável, como essas invisibilidades são extremamente interessantes.
O olho longínquo de Hertzog
O silêncio mediático em torno de "O Olho de Hertzog", de João Paulo Borges Coelho, agora premiado com o Prémio Leya 2009 não tem qualquer defesa. Por uma coincidência fortuita, conheço a narrativa. É um belo exemplar do género histórico clássico: investigação extremamente sólida, não fosse o autor historiador de ofício, trama densamente enredada nos acontecimentos políticos e sociais da época (Moçambique, fim do século 19), linguagem cuidada e pesada ao milímetro, ritmo e acção construídos por método e não pelo mercado. Assim sendo, um acontecimento literário raro. No entanto, após o anúncio da atribuição do prémio, criado com informação obtida na cerimónia organizada pela Leya para o efeito, o silêncio. O facto, que é a realidade até ao momento, leva - nos a pensar em operações, circuitos e estatutos, ou seja na mecânica dominante de construção do mercado literário nacional. Em relação às primeiras, poderemos sempre dizer que a Leya foi um pouco amadora em não ter antecedido a divulgação do prémio de uma distribuição limitada e reservada do texto a um grupo relevante de críticos, como aliás é prática nos mercados profissionais. Mas são os segundos que nos devem, penso, captar mais a reflexão. De facto, a geografia continua a ser um peso pesado, mesmo por aqui. Borges Coelho, que conheci nas páginas do "Jornal de Letras" por volta de 1989, pertence a um circuito geográfico, relacional e afectivo que não se cruza com o da maioria dos profissionais do campo literário nacional, o que leva ao seu afastamento, ou, na melhor das hipóteses, a uma lentidão do encontro. Por outro lado, apesar de o seu suor e obra literária existirem há mais de 20 anos, não tem, por razões que seria curioso conhecer, o estatuto do seu patrício Mia Couto. Deste modo, acredito que há uma boa possibilidade de "O Olho de Hertzog" vir a ser para os portugueses continentais uma leitura remota no tempo e longínqua no espaço.
20091019
A irrelevância da PSP
A tese de doutoramento de Susana Durão, que já existe em livro com o título "Patrulha e Proximidade" é um dos poucos documentos sólidos que temos sobre a Polícia de Segurança Pública (PSP) contemporânea. A investigadora esteve no terreno durante um longo período de tempo, acompanhando a vida de uma esquadra de Lisboa. O trabalho dá-nos uma série fabulosa de dados sobre a ideologia, o imaginário e a praxis dos homens da PSP que nos "serve e protege", mas aqui gostaria apenas de pensar um pouco sobre como os dados empíricos obtidos nos permitem lançar várias pistas que sustentam a hipótese de que existe hoje um enorme fosso entre o que os polícias querem que seja a PSP a que pertencem e aquilo que nós queremos dela. Os polícias querem fazer investigação criminal, aquilo a que chamam "serviço operacional". Nós cidadãos queremos uma polícia que nos proteja, e que seja o agente de autoridade numa sociedade urbana cada vez mais conflituosa. Deste modo, os polícias estão orientados para o que chamam os "bons serviços", ligados à investigação sumária do tráfico de droga e aos furtos, e nós gostaríamos de ter alguém com poder atribuído para resolver o caos rodoviário, e as pequenas violações cívicas e éticas do espaço comum e público. Desta fractura profunda de objectivos, nascem alguns desencontros. Os polícias procuram investigar o que para eles é importante, nós sentimos que eles não respondem ao que nos interessa. Os polícias tendem a acreditar no nós contra eles, e ignoram por exemplo o patrulhamento a pé, a única estratégia de conhecer a comunidade que patrulham e ganhar informação. Nós gostaríamos de conhecer alguém que pudéssemos chamar, e também confiar. Existindo já uma polícia de investigação na arquitectura de segurança nacional, a Polícia Judiciária, e tendo a própria PSP uma divisão com esse objectivo, não será um risco muito grande defender que se a força da PSP no terreno não mudar a sua estratégia, o seu papel será cada vez mais irrelevante para aqueles que deve proteger.
cosmopolis
A partir da sua narrativa fechada, Do Delillo consegue, em Cosmopolis, trazer para a literatura um dos mais interessantes universos contemporâneos, o dos bilionários imateriais, cuja riqueza criada tem origem apenas na especulação com activos financeiros. Packer, o bilionário, desce Manhattan na sua limusina branca, rodeado de segurança, acompanhando em tempo real as flutuações monetárias globais, e tentando encontrar uma razão para continuar vivo. A capacidade de DeLillo é a de desenhar um circuito ficcional que nos leva a compreender o real que interfere no nosso quotidiano contemporâneo. Tal como na obra pictórica de José Batista Marques "Dead End", que é formada exactamente por uma figura que chega de limusina branca a uma barreira que não consegue ultrapassar, Packer nunca poderá chegar a onde quer.
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