tag:blogger.com,1999:blog-67945204532394648482024-03-14T02:20:29.722-07:00sniperuma tentativa de investigar algumas realidades contemporâneas.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.comBlogger45125tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-90363444876286664442014-06-16T02:09:00.000-07:002014-06-16T02:09:15.706-07:00O sinal secreto do Uber
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Será um grave erro
considerar o que actualmente se passa entre a aplicação Uber e os taxistas
europeus como um simples conflito entre operadores de transportes. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Na verdade, é um dos
primeiros sinais visíveis da profunda mudança estrutural dos mercados de
trabalho e dos modelos de negócio, ditada pela ruptura encetada pela tecnologia
e pelo algoritmo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Recordando o contexto,
o Uber é uma aplicação para telefones inteligentes criada por uma empresa de
São Francisco, que, usando o GPS do aparelho, permite ao cliente ver quais os
táxis mais próximos num determinado momento em determinada localização,
escolher um deles, pagar a corrida também através do telefone, e avaliar a
qualidade do condutor e do serviço.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">O Uber funciona num
grande número de cidades americanas, e também em algumas europeias, entre as
quais Londres e Paris, onde, esta semana, os taxistas encetaram greves, em
protesto contra a aplicação e o seu uso por parte dos clientes.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Claro que o conflito
Uber- Operadores de táxis é também um conflito entre operadores de um mercado.
A questão chave aqui é que os agentes da oferta perdem o controlo do mercado,
e, a este propósito, é de muito saudar a intenção de a Uber vir para Lisboa,
que bem precisa de uma aceleração veloz e radical do serviço de táxis, um dos
mais antiquados e deficientes instalados entre nós.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Assim, o que está em
causa, neste ponto, é que os agentes da oferta terão de se preocupar em
oferecer o melhor serviço, a começar pelo melhor condutor, porque o cliente
deixa de querer apenas o serviço. Na verdade, a partir do momento em que o
agente da procura pode previamente avaliar e escolher o serviço, o mercado muda
para sempre.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Mas é a face escondida
desta mudança que mais nos deve fazer reflectir no fenómeno Uber. De facto, é
totalmente límpido neste exemplo, o que é raro, que o factor decisivo é a
tecnologia, e o algoritmo que coloca em acção. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">A capacidade da
aplicação situar o cliente, localizar o melhor carro, fornecer dados sobre a
sua qualidade, partilhar o preço, e processar a transacção, mostra como a
inteligência artificial pode executar melhor que os humanos, e mudar de forma
estrutural um contexto laboral e de mercado.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">É precisamente para
esta vertiginosa mudança silenciosa, e tenho sempre resistido a usar neste
texto a palavra revolução porque penso que não será apenas uma ruptura, mas uma
mudança para sempre, que alguns autores têm tentado chamar a atenção.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Um dos mais consistentes é o economista Tyler
Cowen que no seu livro “</span><b><i><span style="font-family: Calibri;"><a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Average_is_Over">Average is Over: Powering America Beyondthe Age of the Great Stagnation”,</a> </span></i></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;">tenta partilhar os dados que tem e a previsão
em que aposta para o futuro dos mercados de trabalho ocidentais a muito curto
prazo. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;">A tese central de Cowen, que aqui simplifico,
é que o aumento brutal da capacidade da inteligência artificial fará com que as
máquinas entrem em funções que até aqui se acreditava serem propriedade humana
exclusiva, e sejam capazes muito rapidamente de substituir ou de fornecer
alternativas melhores ao desempenho profissional humano.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>No
livro citado, Cowen dá um exemplo muito semelhante ao do Uber, relacionado com
os médicos, quando explica que no momento em que existir uma aplicação que
permita a avaliação dos médicos por parte dos pacientes, a profissão muda
radicalmente.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;">Ainda segundo Cowen, existem dois efeitos
imediatos provocados pela ascensão das máquinas. O primeiro é que em muitas
tarefas profissionais, os humanos serão substituídos. O segundo é que os
profissionais com êxito serão aqueles capazes de trabalhar em parceria com as
máquinas, trazendo o pequeno valor acrescentado tão importante que a máquina
não consegue gerar. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 10pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;">Ou seja, os condutores de táxis que sejam
capazes de processar os padrões fornecidos pelo algoritmo do Uber e se sintam eficientes,
capazes de estar no sítio certo, e competentes para serem escolhidos pelo
advogado Ribeiro, que semanalmente viaja de São Paulo para Lisboa, vai de
metropolitano do Aeroporto para a Avenida da Liberdade, e depois de táxi para
Évora.</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%;">
<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-60352869784037171582013-10-25T02:14:00.000-07:002013-10-25T02:14:03.204-07:00Da purificação gerada pela nobre arte de engraxarComo o vulgar homem medianamente decente sabe, a consequência directa de uns dias de precipitação ligeira, como foram os últimos, é a dedicação à nobre arte de engraxar o arsenal de sapatos possuído, tanto individual, como do agregado familiar, caso se verifique a hipótese muito remota, nos dias contemporâneos, de que este exista e se mantenha. A nobre arte está hoje em extinção, por motivos totalmente absurdos que iremos dissecar neste apontamento, e é um dos últimos redutos do saber e do labor masculino, por motivos totalmente deprimentes. Na verdade, sobre este último tema, é irresistível assinalar que um dos maiores paradoxos estéticos da contemporaniedade é a contemplação permanente nas ruas e nas empresas da cidade de uma jovem ou madura mulher calçada, em ambiente lúdico ou profissional, com um exemplar, em género sapato ou bota, de assinatura reunindo todas as marcas fundamentais do calçado feminino, design distinto, material de topo e pormenor de arrojo, como o salto agulha, conspurcadas por um coro gasto, sujo e manchado por água, lama, e três lágrimas de iogurte magro marca branca, adquiridos devido ao deficiente formato da bancada da cozinha da empresa. Tal dever-se-á certamente, e pensando apenas no contexto português, a alguns equívocos de percurso e éticos, dos quais, por razões de espaço, se enumeram apenas alguns como a não passagem na infância pelo Instituto de Odivelas, a cedência aos padrões culturais dominantes no momento, entre os quais impera o paradigma da não perda de tempo com actividades de saber complexo, labor intenso e duração extensa e, principalmente, à incapacidade de assimilar a importância da nobre arte que aqui nos ocupa. De facto, o que está em causa, milenarmente, como assinalam, entre outros, Platão, Ovídio, a Bíblia e o Corão, é um acto de purificação, onde, primeiro, o homem se liberta daquilo em que o meio o quer afundar, lama, terra, pó, dejectos de pombo, cão, gato e outros animais domésticos, e, depois, mostra a sua força perante os elementos e a circunstância, renovando e reciclando, transformando novamente em puro e brilhante o que trouxe para casa conspurcado, sujo, submerso e gasto. Uns sapatos cuidados e brilhantes são o espelho de um homem que aceita e responde a um desafio, milimetricamente igual ao pecado, que diariamente o assalta e contra o qual, racionalmente, parte e termina derrotado. Daí, a beleza da coisa. Não querendo entrar em pormenores, o acto purificante exige o domínio de alguns factos básicos e de igual número de operações. Antes de tudo o mais, há que separar sapatos e botas de couro integral e genuíno, de todos os outros feitos com as inúmeras derivações criadas pelo mercado e pela tecnologia, como o nubuck ou o couro sintético, normalmente aplicados em botas de caminhada, chuteiras de rugby ou futebol, e "ténis" de corrida. Em relação aos primeiros, os de couro integral e genuíno, a regra de ouro é amaldiçoar e recusar todos os produtos milagrosos da socieadade de consumo, como os cremes e escovas auto-brilhantes e seus pares. Normalmente, são feitos de água e químicos, não limpam, não protegem, não iluminam e estragam o material. Assim, uma boa graxa autêntica, gordurosa, densa e com plasticidade, é fundamental. A operação exige, inicialmente, um pano macio para tirar os elementos de superfície, uma escova de dentes, para passar a graxa na zona de amarração entre a sola e o couro, uma esponja para espalhar a graxa no couro, e uma boa escova macia para iluminar o objecto. No que se relaciona com sapatos e botas de couro sintético ou de materias híbridos ou compósitos, a questão é muito mais complexa. Com efeito, há um enorme fosso entre a oferta do mercado, avassaladora, e a adequação dos produtos que publicita aos tipos de calçado que cada um possui. O fosso é cavado por toda uma geração de profissionais de serviços de sapataria, das lojas de venda aos sapateiros, sem formação, que normalmente aconselham produtos muito pouco adequados. Há aqui um nicho de mercado para um bom sargento Comando ou da GNR na reserva, ou para um velho caminhante cujos músculos estão já demasiado cansados, aptos e com vontade de prestarem alguns tão necessários serviços de aconselhamento. Das minhas constantes e já velhas peregrinações e consultas, de que resultou um investimento pesado e inútil, saliento apenas como válido o shampoo "superactif" da Grison. Apetrechado com o produto indicado, a operação inicia-se, à semelhança da já partilhada para couro genuíno, com a passagem do pano para retirar " a maior". Em sapatos de caminhada ou chuteiras, cuja função briosa é ajudar o seu proprietário a vencer terrenos rugosos e difíceis, como trilhos pantanosos ou relvados inundados, a operação seguinte é retirar a terra ou a lama da sola. Para esta, o ideal é um objecto rijo mas não cortante, apurado mas não esguio, que consiga afastar os elementos dos contornos da sola. Um dos mais adequados que conheço é uma colher de chá. Após esta laboriosa operação, que exige concentração e paciência, porque os elementos recusam-se a facilmente abandonar o conforto maternal da sola, aplica-se o funcional shampoo em generosas quantidades por toda a superfície, esfregando-se depois, lenta e minuciosamente, toda a superfície com uma escova de pelo rijo, quase de aço. A fechar, seca-se com o paninho, e, mais tarde, volta-se à cena do crime, para aplicar um impermeabilizante. A nobre arte de engraxar deve ser executada em ambiente recolhido e nobre, que potencia a concentração e o desejo de libertar a beleza daquilo que está encerrado em fealdade, e será muito útil ao amante da arte que esteja em solidão ou que partilhe a sua melancólica existência com uma profissional de valor que esteja rotineiramente fixada 18 horas no seu local de trabalho, como é o caso das advogadas de direito fiscal, das jornalistas ou das directoras de marketing. Na verdade, os não iniciados na nobre arte, ou aqueles que tiveram uma limitada educação espiritual, tendem curiosamente a concentrar-se nos resíduos expurgados, e não na pacífica e iluminada paisagem encantadora gerada por uns sapatos imaculados.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-5075800783387743532013-03-13T03:44:00.001-07:002013-03-13T03:44:25.207-07:00Uma bolsa para um poeta apaixonado por rugbyOwen Sheers é um poeta galês apaixonado por rugby. Como todos os galeses, a sua paixão por rugby é aplicada numa paixão desenfreada pela selecção de rugby do seu país. Esta última, como todas as selecções nacionais, depende da união de rugby do seu país, uma estrutura absolutamente profissional. Para aqueles pouco conhecedores deste desporto, que serão muitos, partilho aqui o contexto de que o País de Gales é uma das mais míticas selecções de sempre, e ocupa actualmente o quarto lugar do ranking mundial. Ao mesmo tempo, Gales tem também um conselho das artes nacionais, que suporta e financia projectos nesta área. Ora, pensaram os galeses, sendo o rugby uma religião para nós, e sendo o conhecimento sobre este importante para nós, vamos então criar uma bolsa para quem possa recolher e partilhar conhecimento sobre este tema. Entre outros, os escritores. Criaram então, a União de Rugby e o Conselho das Artes, uma bolsa anual para um "writer in residence", com acesso total à selecção nacional. O resultado foi um dos livros mais emocionantes que li nos últimos anos, "Calon". O poeta partilha connosco os mais íntimos pormenores da selecção e de todos aqueles que pertencem à complexa máquina que a coloca em movimento. O que temos não é apenas o produto que resulta de um investimento, o que temos é a expressão cintilante de uma cultura. Aqui chegado, não sei bem por onde começar. Talvez pelo facto de que os galeses acreditam que um poeta pode investigar e partilhar conhecimento. Ou talvez pelo facto de que a não - ficção permite conhecimento. Ou talvez pelo facto de que o desporto é uma arte. Ou talvez pelo facto de que uma máquina profissional como a selecção deve ser transparente e que os seus apoiantes vão ter um enorme prazer em ler sobre ela. Há, na verdade, aqui, em tudo isto, toda uma cultura que nos é estranha. E que, claro, me deprime violentamente por estar num espaço a que ela não chega. Claro que, estes são os meus fantasmas, que nada têm a ver com a realidade. Na verdade, acho perfeitamente possível que a todo o momento o Manuel Freitas declare ao Jornal de Letras o seu enorme interesse em passar um ano com o FCP ou com o SLB. E também considero possível que, horas depois, no site de A Bola, Pinto da Costa e Vieira garantam acesso total. E, para terminar, irei ler sem surpresa que a secretaria de Estado da Cultura irá financiar o projecto.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-30414143988531975712013-02-19T05:38:00.001-08:002013-02-19T05:41:33.616-08:00Something secret<span lang="EN-GB" style="font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-GB;">The beginnings of a book
"genetically destined to rarity" date back to 1980 with a meeting
between two passionate men - a resolute editor and a master printer.
"Flash", by Herberto Helder, was conceived in the shadows and distributed
by the author in total obscurity. It has become one of the most legendary
objects of contemporary Portuguese literature. <br />
<br style="mso-special-character: line-break;" />
</span><span lang="EN-GB" style="font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-GB;">It was one afternoon back in
1973 that Vitor Silva Tavares, mastermind and soul of the Portuguese publishers
Etc, went into number thirteen Calçada de São Francisco in down town Lisbon.
"I could hardly believe it; there, before my very eyes was precisely what
I was looking for. As I entered into that pokey room it was like going into the
Gutenberg workshop", recalls the editor. A small, thin man was standing in
the dimly lit printing workshop, surrounded by the ancient hand printing
presses - the air heavy with the smell of ink. Wearing square glasses and the
"inevitable blue overall" of his craft, he was already an old man and
the little hair on his head was greasy and carefully combed. In a narrow
"mezzanine" at the back of the workshop another man sat at his desk
engulfed in the darkness - a tall, broad man, he was elderly too and he eyed
the visitor curiously. The man Vitor Silva Tavares had just met in the workshop
was José Apolinário Ramos - a master of his trade; the other, sitting at his
desk, was the owner of Ideal typography - Benamor Palma -whose physical prowess
prompted the Portuguese poet Luiz Pacheco to call him the great horse.<br />
Today, recollecting "this enlightening encounter", the 70 year old
Vitor Silva Tavares runs his hand through his beard and white hair, his thin
face lights up with a smile, his eyes shining brightly: "The two old men
couldn't believe what I was proposing to them".<br />
For the two craftsmen who were the cream of Lisbon's last generation of the
printers class, Vitor Silva Tavares' proposal was the devil's temptation. When
he came across them in the workshop, <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Palma</st1:place></st1:city>
and Apolinário Ramos had been together for over 60 years. The two had both
started out in the printing trade as lads in short trousers and in those days
their thoughts were filled with no more than playing games in the street.
Apolinário Ramos had gone into the trade with Imprensa Lucas in Bairro Alto, a
traditional <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city>
neighbourhood. At the same time, <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Palma</st1:place></st1:city>
was an apprentice for his predecessor who was also a master of the
"printing press" as they called it at that time. Shortly afterwards,
Palma's father bought Ideal; its history as a distinguished printers went back
many years and the Portuguese royal family had even used their services during
the reign of king D.Luís in the second half of the 19th century. It was there
in Calçada de S.Francisco, that <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Palma</st1:place></st1:city>
and Apolinário Ramos became masters of manual print-setting and they had
nothing but disdain for the mechanical press which came to the fore in the 60s
in <st1:country-region w:st="on"><st1:place w:st="on">Portugal</st1:place></st1:country-region>.
In the glorious 50s and 60s the famous Portuguese poets, Brito Camacho and Raul
de Carvalho, were faithful clients and there were never less than "twenty
books lined up to be printed", as Apolinário Ramos told an interviewer for
"Diário de Lisboa" (DL) in 1981. But the Ideal of the 70s was as old,
tired and disillusioned as its two craftsmen, printing nothing but visiting
cards, envelopes and headed business paper. <br />
Vitor Silva Tavares wanted to make books, known as "full composition"
because the print "filled the whole page". The two masters were
sceptical, disinterested, "it's so tiresome, senhor Vitor".<br />
But the editor, for whom a hand made book was sacred, did not give up. "I
had to pull out all the stops to convince them. But I finally managed to work
up some enthusiasm about going back to printing books from the two old
men".<br />
Vitor Silva Tavares found himself spending day after day at that pokey workshop
in rua S.Francisco and as he did so he became increasingly enchanted by the art
that he was witnessing. They printed many of his authors there, along with
poets like Gomes Leal from days of old. The slow and, in his eyes, wonderful
process of printing by hand made him tell all his poet and writer friends about
Apolinário Ramos' talent when they met up at their daily literary gatherings.<br />
In Silva Tavares' opinion, this is what led Herberto Helder to bring up the
subject one afternoon in early 1980 in one of their regular meetings in a <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city> café. The poet had
not only heard of Apolinário Ramos, but he had also been to him personally. His
poem "The body, the luxury, the workmanship" had been printed at
Ideal in 1978 in Etc's collection "Contraponto". Meanwhile, at the
time of the conversation, Herberto Helder had already begun the book which made
his name as a leading poet: "Photomatom & Vox" for the publishers
Assírio&Alvim, who are still publishing the best Portuguese poetry today.<br />
But personal reasons, Apolinário Ramos' fame, "not to mention the question
of money", recalls Silva Tavares, led Herberto to ask the editor:
"how much do you think it would cost me to do something special at
Apolinário Ramos?" This was the start of "something secret" as
Vitor Silva Tavares calls it.<br />
In those first months of 1980, Herberto Helder was already
"Herberto", a name always used with a mixture of boundless respect
and strange reverence by those who read his work and who were accomplices to
his life-style in the world of poetry - a life-style which combined the writing
of exceptional poetry with complete silence and total segregation from
everything other than family and friends. <br />
The fact that his trajectory is classified as a "State secret" by
those who know him, does not stop people telling some rather strange stories
about him. Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira was born on <st1:date day="23" month="11" w:st="on" year="1930">23rd November 1930</st1:date> in
Funchal, <st1:place w:st="on">Madeira</st1:place>, a small Atlantic island
which is part of Portuguese territory. When he finished what used to be known
as the seventh year of High School in <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city>
he went on to <st1:place w:st="on"><st1:placename w:st="on">Coimbra</st1:placename>
<st1:placetype w:st="on">University</st1:placetype></st1:place>, first to
study Law in 1948, later changing to Romanic Philology in 1949. In <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Coimbra</st1:place></st1:city>, he lived in the
"republica", a students' residence, called "Palácio da
Loucura"(<st1:place w:st="on"><st1:placename w:st="on">Madness</st1:placename>
<st1:placetype w:st="on">Palace</st1:placetype></st1:place>), and got totally
caught up in bohemian student life, writing poetry and even publishing some of
his work. <br />
He returned to Lisbon in 1951 to start his first of many jobs - this one in
Caixa Geral de Depósitos, a state owned bank; but he continued to write and to
publish, albeit sporadically.<br />
By 1955 he very much belonged to the group of <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city> intellectuals who would meet regularly
either at café Gelo or Montecarlo; here they would pontificate over Mário
Cesariny, Luiz Pacheco, Vitor Silva Tavares, Ernesto Sampaio and the likes, not
to mention Carlos de Oliveira who was one of Herberto's great friends.<br />
In 1958 he published his first book "O amor em visita"(Visiting
Love), married for the first time and, thanks to the intellectual milieu in
which he circulated, got involved in politics. Herberto was one of the Lisbon
Cathedral conspirators who organised a revolution to bring down the dictator
Salazar in March 1959. The Cathedral Revolt was organised by a diffuse group of
Portuguese intellectuals and Catholics. The plan was to occupy the <st1:place w:st="on"><st1:placename w:st="on">Government</st1:placename> <st1:placetype w:st="on">Palace</st1:placetype></st1:place> and take the dictator, António
Oliveira Salazar, prisoner. The plan fell apart when the political police,
known as PIDE, arrested its leaders the very night it was to be put into
action. Oliveira Salazar continued in power until April 1974 when a military
coup d'état led to his downfall. <br />
But hopes ran high among the conspirators on the night of <st1:date day="11" month="3" w:st="on" year="1959">11th March 1959</st1:date>. Maria Eugénia Varela
Gomes, wife of one of the leaders of those fighting against the regime at the
time, João Varela Gomes, talks of this in her recently published memoirs
"Contra ventos e marés". She recalls that the poet was not at the
cathedral but at one of the houses where the conspirators had gathered ready to
go onto the streets of <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city>
when the revolt broke out. On the night of the 11th when the coup d'état was
supposed to take place, Maria Eugénia was one of the people at that house with
Herberto. "...Everyone was so excited. I remember Sacuntala Miranda was
singing revolutionary songs until Herberto Helder was heard to say in a wry
voice from his corner (...):"Very nice. And tomorrow morning the street
sweepers will come and sweep up all our bodies". Everyone just looked at
him. You can't imagine how much I laughed" recollects the old freedom
fighter.<br />
With the end of the coup d'état and its leaders in prison, Herberto left for <st1:place w:st="on">Europe</st1:place>. The following year he lived in <st1:country-region w:st="on"><st1:place w:st="on">France</st1:place></st1:country-region>, <st1:country-region w:st="on"><st1:place w:st="on">Belgium</st1:place></st1:country-region>, <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Holland</st1:place></st1:city> and <st1:country-region w:st="on"><st1:place w:st="on">Denmark</st1:place></st1:country-region> picking
up any work he could get to pay his keep.<br />
Back in <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city>
in 1960, he managed to get a job with the Gulbenkian Foundation's mobile
library, travelling around the provinces of Ribatejo and <st1:place w:st="on">Lower
Alentejo</st1:place>. The Calouste Gulbenkian Foundation was set up by an
Armenian petrol millionaire who had fallen in love with Portugal; one of its
programmes was to "take culture to the masses" using mobile libraries
set up in vans that went from village to village lending books.<br />
Herberto had already become legendry as a poet and as a personage when he
published "Os Passos em <st1:place w:st="on">Volta</st1:place>" in
1963.<br />
After 1964, Herberto had a number of jobs related to publishing and journalism
and started writing more intensively and publishing with some regularity. He
married for the second time in 1969 and his second son, Daniel, was born. He spent
1971 and 72 in <st1:place w:st="on"><st1:city w:st="on">Luanda</st1:city>, <st1:country-region w:st="on">Angola</st1:country-region></st1:place> working as a journalist for
the magazine "Notícias". In an interview with the Jornal de Letras in
1994, Ventura Martins - his colleague from the editorial office - recollected
that, just like the poet Fernando Pessoa, Herberto wrote at night when he could
sit alone at his type writer. It was in <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Luanda</st1:place></st1:city>
that Herberto met Olga, the woman with whom he still lives today.<br />
His work with "Notícias" continued in 1973 in the Lisbon Office where
one of the articles he wrote was on a Benfica-Sporting football match which he
entitled "a trip to the field".<br />
One of his most important works, "Photomaton&Vox", was published
in 1979 by Assírio&Alvim. He was now able to embark on a new phase in his
life thanks to the relationship built with this editor and with the security of
a monthly payment he was able to dedicate himself entirely to poetry. <br />
Although producing much more, he continued to write regular letters to friends
and to meet up with his literary friends almost daily - a favourite meeting
point was a <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city>
café called "Águia de Ouro" on the Escadinhas do Duque. According to
some of his less prudent friends, it was at these informal literary gatherings
that Herberto showed his true self. Ernesto Sampaio wrote that he is
"neurotic, pleasant, but his irony distances him". João César
Monteiro tells how as they sat round the coffee table he would sometimes
"come out with something that was the inspiration of our afternoons".
And Baptista-Bastos, even less discretely, let slip that the poet likes to
"do things on the sly" and exchange confidences about "obscure
wines and sensual women who play hard to get".<br />
Herberto Helder's poetry, which draws on unique references combined with even
more esoteric language, is the subject of constant study by essayists and
academics. The poet and essay writer Fernando Pinto do Amaral notes that his
poetry has "a creative power which brings order to an unmistakable
universe and overflows with verbal energy". Manuel Hermínio Monteiro, his
friend and the editor of Assírio who died recently, used a particularly
beautiful image in an interview to "JL": "there he goes and it's
good to know that he is an alchemist turning our day-to-day into gold".<br />
Strangely enough, it is Herberto himself who best charts his work. Surprisingly,
in 2002 he interviewed himself for the magazine "Inimigo Rumor" in
which he gives us a crystal clear picture of his place in the world and in
poetry. He reveals that "a poem is written because there is the suspicion
that while we are writing it something extraordinary is going to happen,
something which changes us, that will change everything. Like in childhood when
we are standing at the door of a dark and empty room". A few paragraphs
later, Herberto reinforces this image "(...) there's just a suspicion that
some kind of skill, special flair reluctantly awaits us. Contemplating a face,
someone you love, an instantaneous something: or the face of a stranger,
shielded. We think: it's a new life, a new and profound strength, it's a
mysterious landscape, profound and new that is intimately linked to us: it's
going to reveal itself".<br />
And, further on he gives us an unquestionable definition of his domain when he
defends that "we either work in the day-to-day where wonders have not yet
been banished, or there are other places, a wonderful day-to-day, and so the
poem is weighed down with magnificent, awesome powers; put in the right place,
at the right moment, following the right rule, a disorder and order is promoted
and they place the world at its extreme: the world ends and begins".
Essentially, according to the poet, all his work is in pursuit of "the
power to dismantle the words of the world and put them together again, that is:
reality, although we don't know what it's about, that is: power and reality".<br />
Vitor Silva Tavares is a man driven by such ambitious goals that he took on the
assignment to do "something secret" that afternoon in late 1979.
Today, nearly twenty five years after the publication of "Flash",
Silva Tavares has no doubt about what brought it about. <br />
In his words, Herberto was looking for an "intimate satisfaction",
taking "a manuscript to Gutenberg's galaxy", that is, its printing,
but with the "added allure" that the text was not for "bookshops
or newspapers", but just for a few specially chosen readers, "thus
defending himself from being exposed to the spotlight, because the most
beautiful things are the ones that are safeguarded". Essentially, the
editor added, it was a book that was "genetically destined to rarity",
not to mention the fact that the author's edition was also "a luxury
subject to the uncertainty of the pocket-book".<br />
With manuscript in hand, Silva Tavares cheerfully returned to the dimly lit
workshop in Calçada de S.Francisco because, yet again, he could make good use of
José Apolinário Ramos' art.<br />
At Ideal, there was a rigid and out-dated routine. The working day started at 8
with a break for lunch between 12.30 and <st1:time hour="1" minute="0" w:st="on">1o'clock</st1:time>
and ended at <st1:time hour="17" minute="0" w:st="on">5 p.m.</st1:time>.<br />
Apolinário Ramos never gave an inch, quite the opposite. He was as strict in
his trade as Herberto was with his writing. There was no room for manoeuvre in
the complicated, esoteric and closed art of printing by hand, especially when
it came to time. "We never gave time a thought. The time we had was fair,
and it ran out, because time is essential to any art because art demands
precision and patience", explained Silva Tavares.<br />
A little after <st1:time hour="8" minute="0" w:st="on">8 o'clock</st1:time> one
morning, Silva Tavares arrived at Ideal to start printing "Flash"; he
went straight to the moulds to decide on the best letters to print the poem. As
always, they were tidied away in their original order in a corner cupboard:
they were arranged according to the kind of letter, capital letters at the top
- hence the tall box - and small letters underneath in a short box. The first
step was to choose the kind of letter, "the one which best fit the text
being printed". For "Flash", he chose Elzevir, font size 12.<br />
Apolinário Ramos, who did not like taking shortcuts, started by studying
"the thing", that is the text which was before him. In the case of
"Flash", he had a 16-page poem, another page for the dedication, and
a final page with the publisher's notes. The rule for type setting which he
followed was to fix the line of symmetry from the longest verse, thus
eliminating "empty spaces" on the first and any of the subsequent
pages. Then, he studyied the original to decided on the "measurements of
the block of text", the space the text would fill on each of the pages;
this was based on the length of the verses and passages from page to page,
among other details.<br />
Once this was done, the amazing process of manual composition was set in motion
over the following days. Each character, or mould, was an almost invisible
piece of metal set on a fine metal plate - finer than an old fashioned shaving
blade. There were also pieces of type for the spaces, commas, full stops and
other punctuation. <br />
This means that each letter corresponded to a piece of type and they were put
together to form the words in the poem, in a line, set out on the plate; this
in turn was fixed to the machine and lined up by the so-called composing stick
- a metal ruler at right angles.<br />
It is not hard with some quick calculations to see that one line of the poem
needed dozens of pieces, so setting out a full page involved hundreds of
moulds. Once the metal pieces, the characters, were lined up, the next step was
spacing; the so-called reglet made precise measurements of the space between
letters and between lines which were called quadrats. It was also necessary to
get a harmonious balance between the space of the common line and the Curandel
- the place where the capital letter was introduced - and the capital letters
at the beginning of a sentence.<br />
"Flash" was particularly hard work because the manuscript was
accompanied by a drawing by the Portuguese artist Cruzeiro Seixas using black
and blue with red highlights. Apolinário Ramos used the very old technique of
reproduction on zinc; there was a plate for each colour fixed on wood where the
inks were made by hand so that they were as true as possible to the original,
mixing small pinches of lithographic inks. Silva Tavares has no reservations
about sharing how he felt at that time: "paper, metal, wood. It was
alchemy. I was involved in an anachronous experience, but I was on tenterhooks
every second as I watched a typography artist creating".<br />
With all the calculations done, the hundreds of pieces of the front page of the
future "Flash" were tied tightly with string, and placed on the plate
where the whole composition was tightened by flaps. <br />
All this was then put into the manual press and then, with the aid of brute
strength, the compressor roll fixed the ink on the dampened page, producing the
part of the poem which fitted on one page created by the sea of metallic
characters. After a thorough check for any misprints the page was placed in the
printing press, but because the tray was so small the poem was printed "in
four", that is two pages on one side and two pages on the other.<br />
The first four pages of the poem - just like all the others to follow - were
printed on dairy paper - the most rudimentary paper there is and the kind that
was used to wrap fat in the old days. The editor of Etc. used his contacts to
get hold of reams of this paper and made a number of books with it. "Once
again, not only was it cheap but it gave us the illusion of doing something
special because the poem brought dignity to this scorned paper".<br />
The work was so slow that it was only at the end of April that the 18 pages of
the first copy of "Flash" were taking shape. When the printing of
this first copy was finally complete, the pages were sewn together using a hand
sewing machine they had at Ideal. Silva Tavares assures that it was he that
tied the "last knot" of that first copy. And so it was that one sunny
afternoon in May Victor Silva Tavares held a poem in his hand; its opening
verse read: "There's no body like this, diver, crowned with pure volumes
of water/ There's no search so deep, at that pressure, as a cold island weighs
on the water, the roots of an island".<br />
Between April and June 1980, using this very method so crudely described above,
they printed 250 copies of "Flash" at the cost of no more than 100
euros. <br />
Silva Tavares carried the "package" himself to Herberto who was
waiting for him in the café Montecarlo -on Avenida Fontes Pereira de Melo in <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Lisbon</st1:place></st1:city> where today you
will find the dress shop "Zara". "Herberto said nothing, there
was no need", assures the man from Etc.<br />
"Flash" was one of the last books made at Ideal, a last farewell from
"an aristocrat of the printing press" as Silva Tavares put it. Not
many years later <st1:city w:st="on"><st1:place w:st="on">Palma</st1:place></st1:city>
died. Apolinário Ramos went on going to Ideal for a while and spending some of
the night in the Voz do Operário library which he was in charge of. Four years
later he too died leaving no-one to follow in his footsteps. <br />
The manual printing press, the metal characters, the Ideal archives - the new
owner of the typography assures us they were all thrown out.<br />
Victor Silva Tavares is still "in the resistance" as he puts it,
making books, but he has given up looking for manual workshops. Herberto Helder
has become a living legend and goes on writing. <br />
"Flash" did not disappear into obscurity - quite the contrary. The
fact that for reasons known only to himself <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Herberto gave away only a few of the 250
copies, means that it is one of the most sought after and longed for books by
readers and book lovers all over the world. A real treasure that is rare to
find. <br />
Meanwhile, perhaps most important of all is that anyone who pages through a
copy of "Flash" will find an inscription on the last page that is
witness of a noble undertaking, now disappeared forever: "The pamphlet
"Flash", author's edition, not on the market, a manual composition,
in ELZEVIR font size 12, by the artist-typographer José Apolinário Ramos, and
printed at Ideal Typography, Calçada de S.Francisco, number13, Lisbon, in June
1980. "Limited edition" by Cruzeiro Seixas. 250 copies made".<o:p></o:p></span>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-88917167891041085452012-11-16T05:12:00.002-08:002012-11-16T05:12:26.217-08:00Sobre o conhecimento da revolta e da ordemInfelizmente, dois dias depois do primeiro acto de reacção policial a uma radicalização do protesto civico, continuamos sem ter conhecimento de alguns dados essenciais para podermos dominar e decidir o que está em causa. Do acontecimento de quarta-feira, e das suas ramificações anteriores e principalmente posteriores, podemos isolar, pelo menos, três dimensões importantes: a materialização pontual da revolta radical, o exercício da autoridade e da restauração da ordem, e o conhecimento conseguido pelos profissionais jornalistas. Está em causa também uma quarta dimensão, o grau de maturidade dos portugueses em relação ao que neste texto se discute, que tentaremos também abordar. As notas que se seguem procuram recortar algum conhecimento sobre estas quatro dimensões.<br />
A questão fundamental a que os manifestantes radicais têm de responder é qual é o seu ideário e a sua prática. Na verdade, está há já muito tempo ultrapassado o limite de tempo que lhes permitia uma indefinição entre o oportunismo espacial e mediático para acções radicais espontâneas, as manifestações, e a sua completa inexistência. O que está em causa é a revelação da sua identidade ideológica e da sua praxis. Assim, o que todos pretendemos saber é se são apenas vários conjuntos atomizados de membros vagos de ideologias e de organizações em rede, que vão do Black Bok aos estivadores com lideranças em claques de futebol, ou se conseguiram erguer uma estrutura, ou estruturas, com fundamento ideológico e um plano estruturado. Deste modo, obviamente, queremos saber se pelo menos têm uma racionalidade, por mais condenável que esta seja, ou se neles tudo começa e se esgota na expressão pontual de violência gratuíta. Neste campo, queremos também perceber o que pensa a esquerda parlamentar e sindical sobre os protagonistas desta via radical. Na verdade, se atentarmos na entrevista que Francisco Louçã deu há três semanas na Visão, ou na entrevista que Manuel Carvalho da Silva deu ao Jornal de Negócios no passado dia 9, entre outros testemunhos, vemos que existe uma tentativa de construção de pontes. Esta revelação de identidade é fundamental para todos entendermos, a começar nos instrumentos do Estado e a acabar no vulgar cidadão, se estamos perante criminosos de delito comum, ou executores de subversão e terrorismo, tal como estes estão tipificados na legislação portuguesa. <br />
Os autores do exercício da autoridade e da ordem, de entre os quais salientamos o Governo e as polícias, estão encarcerados no segredo e no amadorismo mediático. O primeiro ponto a reter, na questão do segredo, é que por motivos inexplicáveis não partilham o facto de que o Governo impôs um principio estratégico de risco, o de desde 15 de Setembro ter transmitido aos corpos de polícia a ordem de não impedir a violação da ordem pública, em nome do não aumento do clima de desespero e revolta social. O risco desta estratégia, que é estudado há muito nas academias de polícia e no meio académico, materializou-se, já que, em dois meses, os manifestantes radicais foram assumindo a mensagem de que a polícia não iria nunca reagir. Agora, ultrapassada a estreita linha vermelha, a tendência é que à acção violenta do corpo da ordem, os radicais respondam com maior, mais impresvísivel e mais atomizada radicalização. <br />
O segredo dos constitucionalmente detentores do exercício da autoridade e da ordem estende-se à não partilha pública dos dados que possuem sobre o fenómeno. Existem várias perguntas a que têm de responder. A primeira é a de sabermos se SIS, PJ e a Unidade de Informações da PSP fizeram ou não o seu trabalho, e se possuem ou não informação relevante sobre os protagonistas da revolta radical. O que está em causa, primeiro, é percebermos a razão pela qual o exercício de isolamento de alguns elementos radicais foi feito apenas durante a manifestação, e não antes, como é realizado em todo o Ocidente, em fenómenos com esta tipologia. O que está também em causa, em segundo lugar, é mais uma vez sabermos se estamos perante estruturas, ou perante uma revolta inorgânica, atomizada e pontual. Se o cenário for este último, então a carga e acção de detenção generalizada que se seguiu policiais têm um fundamento, que deve ser comunicado publicamente.<br />
A acrescentar ao acima anotado, está o problema do amadorismo mediático do Governo e da PSP. Antes de tudo o mais, adoptam uma táctica reactiva, isto é comentam depois do acontecimento. Depois, fazem-no com soundbytes abstractos. Classificar, como o fez o Primeiro-ministro e o Ministro da Administração Interna, de adequada e proporcional a carga e a acção de busca e detenção, é perder desde logo o controlo da mensagem.<br />
A única estratégia possível do Governo é, antes do mais, perceber que está envolvido num problema que não conseguirá resolver. Por razões culturais e emocionais, a maioria dos cidadãos estará sempre contra o exercício da violência por parte da polícia. No entanto, este cenário não limita a execução de uma táctica activa. Esta passa, prioridade um, como já foi referido, pela divulgação dos dados que possui sobre os manifestantes radicais. É o conhecimento que permite o julgamento de cada cidadão. Mas passa também, prioridade paralela à primeira, pela passagem de conhecimento aos jornalistas do essencial sobre a teoria e a prática de corpos especiais como são o CI da PSP e o GIOP da GNR. Muito há a transmitir neste campo, porque são corpos com uma missão extremamente complexa, mas neste espaço gostaríamos de salientar apenas que aquilo que ao cidadão sem conhecimento parece impressionante, o contacto violento com manifestantes sem discriminação de idade ou sexo, ou a perseguição aparentemente aleatória, são, efectivamente, tácticas planeadas e as únicas possíveis para restaurar a ordem e garantir a segurança de todos, principalmente daqueles que executam a missão. Por exemplo, uma secção do CI que neutraliza um quadrante não pode ignorar uma mulher, porque esta poderá lançar um cocktail molotov nas suas costas.<br />
A terceira dimensão que pretendemos abordar neste texto sumário é a do conhecimento conseguido pelos jornalistas. Da análise do publicado, podemos detectar dois problemas maiores, o da cumplicidade e o da negligência. Quanto ao primeiro, não é aceitável que um jornalista trabalhe sobre um fenómeno, e, simultaneamente, revele as suas opções ideológicas, morais e de cidadania numa rede social. O profissional antes de ser jornalista é cidadão, e se está perante um fenómeno onde sabe que os seu valores vão influenciar o seu trabalho, deve revelar objecção de consciência e recusar o trabalho.<br />
O segundo problema é ainda mais grave, e, neste campo, os jornalistas caminham lado a lado com o governo e a polícia, ou seja, são meros espectadores reactivos, limitando-se a coleccionar e a reproduzir momentos impressionistas. São meras testemunhas sem acesso aos níveis reservados, e não procuram sequer adquirir conhecimento sobre os vários contextos existentes. É já muito tarde, mas existe ainda uma janela temporal, para recuperarem o tempo perdido, e procurarem executar a sua missão. Antes do mais, devem planear o seu esforço de investigação, onde tudo assenta, e dividirem o fenómeno nas suas várias dimensões, para, pelo menos, ganharem conhecimento sobre uma delas. Não é assim tão dificil, se forem profissionais. Sobre uma das dimensões principais, a do exercício da ordem, consegue-se acesso através da insistência. Sobre a outra, os manifestantes radicais, consegue-se acesso, na maior parte dos casos, através da exploração das redes pessoais, já que aqueles pertencem à sua geração, ao seu meio social e cultural, e aos seus circuitos.<br />
No meio de toda esta complexa questão, está o nosso grau de maturidade em relação à fractura das habituais normas e regras de comportamento social e público, como são os actos radicais de revolta. Impressionaram-me, na análise dos comentários nos OCS e nas redes sociais de cidadãos comuns e dos cidadãos com notoriedade profissional e social, duas questões. A primeira é a total inocência, como a expressa por alguns de que não contavam ser agredidos, ou viram em perigo entes queridos. Há todo um acumular de conhecimento de senso comum em sociedades habituadas à violência social que parece não existir em Portugal. É preciso ter a absoluta noção de que estar numa zona de conflito implica um risco e um perigo que se pode materializar. Mas o que me impressiona mais é a contínua e indignada reinvidicação de imunidade. Cada cidadão, e cada militante, decide em sua própria consciência qual é o seu lugar na sociedade e na revolta. É este um dos milagres da democracia. Mas a democracia tem fronteiras fixadas por todos, as leis e normas aprovadas, e cada um tem de saber lidar com o facto de que os seus actos têm consequências. Por outras palavras, não é aceitável estar presente ou actuar e não querer pagar o preço.<br />
O cenário nacional para os próximos meses é de tensão e conflito. Todos o sabemos e sentimos. Não há nada que alguém possa fazer para eliminar esta instalação mental e social. No entanto, há todo um enorme trabalho a fazer por aqueles que querem ou têm de estar na linha da frente. O primeiro passo desse trabalho é ter a plena consciência do que é gerado por cada acto pensado e praticado. O segundo passo é o de que executores da autoridade e da ordem, manifestantes radicais e jornalistas percebam que a obtenção e partilha de conheicmento contribui decisivamente para a cidadania e segurança de cada e de todos os cidadãos. <br />
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-90359555152078980712012-09-06T05:56:00.001-07:002012-09-06T05:56:46.744-07:00Nadine revela a escuridãoO novo romance the Nadine Gordimer, <a href="http://www.nytimes.com/2012/04/08/books/review/no-time-like-the-present-by-nadine-gordimer.html?pagewanted=all">No time like the present</a>, recentemente editado, ainda sem versão portuguesa, é sombrio. A escuridão revelada pela trama não podia ser mais cruel para aqueles a quem África toca, a de que as sociedades africanas contemporâneas são incapazes de funcionar.<br />
Nadine tece uma estrutura narrativa particularmente sólida, assente num casal misto, ele judeu branco sul africano, ela zulu, que participou na "luta", ou seja na guerra armada contra o apartheid, e está agora inserido na classe média do país do arco-íris. A estrutura de Nadine não está submetida a um objectivo de virtuosismo ficcional, como é o caso de<a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Disgrace_(novel)"> "Disgrace"</a> de Coetzee. Pelo contrário, Steven e Jabu, o casal, servem apenas de eixo para a acomodação do que é hoje a áfrica do sul, permitindo uma longa digressão da autora por aqueles que considera os sinais mais fortes de que o país está em agonia. A questão central é, sem dúvida, a de que a nova sociedade multi racial justa e funcional prometida pelo ANC, e pela qual os seus militantes lutaram e morreram, é um sonho adiado, e que possivelmente nunca será concretizado. A partir daqui, Nadine usa a narrativa para rodar os sinais. Surgem primeiro os mediáticos, como a asfixia permanente causada pela insegurança, e depois os mais ocultos, entre eles a incapacidade de tirar os cidadãos da pobreza, o falhanço das medidas de promoção empresarial e educativa dos negros, que só leva a que sejam admitidos nas universidades e empresas pessoas sem qualificação para tal, e a xenofobia, causada pelo desemprego, que desencadeia os ataques sistemáticos aos zims, cidadãos do Zimbabwe, moçambicanos e congoleses. Todos os sinais assentam no cenário da incapacidade e da corrupção moral e efectiva do ANC, personificada em Zuma, o actual presidente. Mandela quase não existe na narrativa. Steven e Jabu acabam por encarar que a única saída é a emigração, ou seja o abandono de uma vida dedicada.<br />
Duas ideias ficam-me com a leitura. A primeira é a de mais uma revelação de que as sociedades africanas contemporâneas continuam a não mostrar uma capacidade de serem funcionais. O patamar procurado nem é o da democracia sequer, mas o da segurança dado pela existência de poderes efectivos, que assegurem uma regulação e uma confiança mínimas. Não trazendo sequer a página o que se passa no Zimbabwe e no Congo, pense-se a partir destas últimas eleições angolanas, ou dos relatos de <a href="http://www.amazon.co.uk/Looking-Transwonderland-Travels-Noo-Saro-Wiwa/dp/1847080308">Noo Saro Wiva</a> sobre a Nigéria. <br />
A segunda ideia tem a ver com a nossa ficção em língua portuguesa. Continuamos a não ter ficcionistas que juntem o rigor da escola realista com a ambição de contar a contemporaniedade. Ou seja, não temos acesso ao que se passa hoje nos lugares mais importantes dos países africanos que falam português.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-45282913413047800802012-05-26T02:31:00.001-07:002012-05-26T02:31:36.721-07:00o esquecimento<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0wsjJ102Rx0EULpizZ9XTw8mA7zonE1QtrgFqG3J4fGnaJdfztW1h5ZpFgYBV0NStTdF7x8LFMxnWnIKtuhGKyXvdJbGNWdQDYPwYi3j_xqALdt3-nLR0kdt7culN2jH8MOzbGRVdX4fn/s1600/robinson.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" qba="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0wsjJ102Rx0EULpizZ9XTw8mA7zonE1QtrgFqG3J4fGnaJdfztW1h5ZpFgYBV0NStTdF7x8LFMxnWnIKtuhGKyXvdJbGNWdQDYPwYi3j_xqALdt3-nLR0kdt7culN2jH8MOzbGRVdX4fn/s1600/robinson.jpg" /></a></div>
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<br /></div>
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Não há dia em que uma pergunta básica não esteja na minha cabeça. Porque razão não publicamos, salvo escassas excepções, livros bonitos em Portugal? Uma das razões que me levou, ainda miúdo, a gastar fortunas, na era pré-internet, em edições inglesas, foi a de que, geralmente, os livros são muito bonitos. O que torna estes livros tão bonitos? A estética e a dignidade. A estética abrange, antes do mais, o elevado design gráfico do "dust cover" e a escolha cuidadosa da fonte tipográfica. A diginidade implica a escolha dos melhores papéis, a enumeração de todos os profissionais envolvidos e da editora, e a menção da edição. Quem não tem orgulho em ter na estante uma "first printing, first edition"? Assim, temos um objecto que cativa ainda antes do texto, e que traz orgulho a quem o expõe e partilha. O mesmo não se passa por aqui. Tenho de facto uma tristeza enorme em olhar para as edições portuguesas de mestres da escrita, como Borges e Calvino, e ver as pobres edições em que foram acantonados. E o que pensará um autor maior nacional, como Lobo Antunes, quando olha para os seus livros?</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
Será fácil dizer que as más edições nacionais se explicam por razões financeiras, sendo óbvio que muito da questão passa por aí. Mas o ponto fundamental é a incapacidade da recusa, ou seja a fronteira ética. Os editores aceitam, ou resignam-se, a publicar livros feios e os leitores aceitam comprá-los. É uma menorização ética e cultural de todos nós absolutamente trágica.</div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-81602447578089725202011-12-13T05:52:00.000-08:002011-12-13T05:52:52.141-08:00As outras históriasTodos os dias trabalho com texto. Ficção, não-ficção, próprio, de outros, estruturando, criando, editando, por iniciativa própria ou por contrato. E, no entanto, parece-me sempre que nunca consigo criar o texto que está sempre comigo, que me perturba. Parece-me também que existem duas barreiras que contribuem para o referido efeito. A primeira é a de que não consigo encontrar as palavras que traduzam o que me acossa. A segunda, sendo eu um burocrata, é que não consigo desenhar o formato adequado. Um dos textos que me persegue desde sempre, e que se desdobra em múltiplos textos, tem a ver com as outras histórias. Acho que o projecto nasceu com as cidades invisíveis de calvino, lido há mais de duas décadas. Em essência, tem a ver com reportar e reproduzir em texto os imaginários riquissimos a que normalmente não temos acesso. Por exemplo, como será hoje viver em Detroit. Mas também como persistir na manufactura de ferramentas. Ou, ao lado, como será o mundo dos que já pertencem aos nós digitais. Por outras palavras, convocar todos os mundos que escapam um pouco ao interior das nossas fronteiras limitadas. Pensava nisto, mais uma vez, hoje de manhã. E eis que a minha amiga Cândida alerta para um maravilhoso texto de Henning Mankel, "In africa, the art of listening", publicado no New York Times. O texto fala da experiência de viver aquilo que eu idealizo. É uma espantosa coincidência. Tenho de lhe prestar atenção.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-32929501350010646032011-11-23T05:35:00.000-08:002011-11-23T05:35:31.539-08:00uma solidão com lâminasHá interesses maiores naturalmente secretos. Por outras palavras, a natureza dos interesses choca com a cultura assente, e quando assim é, a via prudente é a amputação da partilha. Dos meus, o mais sufocado é a paixão por lâminas. Como todos os interesses pessoais maiores, não há propriamente uma identificação clara da origem. Mas entre infâncias no mato, histórias de guerreiros e noites de escuteiros, alguma marca terá sido fixada com profundidade. O percurso da paixão começou pelas más lâminas existentes em portugal, nesses tempos afastados dos anos 80 do século passado. Canivetes de cabo de plástico vermelho, e facas de mato de série. A sedução foi-se mantendo pelo tempo, o que levou a expedições periódicas frustrantes às antigas tabacarias de Lisboa e arredores. Mas, na verdade, o desejo só encontrou objecto à altura quando chegaram os primeiros Leatherman, comprados na primeira versão da Econauta, ou trazidos de paragens europeias, quando nos aviões era permitido transportá-los nos bolsos das calças. Um bom tempo. Os primeiros Leatherman fascinavam pela complexidade do engenho, e pela beleza estética do objecto. No meu caso, são estas as características que fixam e perduram a paixão. Antes do mais, a capacidade do artesão, o seu labor e genialidade. Depois, a beleza material da lâmina. Certamente que o conforto da segurança de ter uma arma, e aquela confusão de sentimentos sempre classificada como "rapazes serão sempre rapazes", terão também o seu peso de influência. Enfim,embora desconfie que estas são propostas teóricas algo limitadas, já que a minha avó aos 80 anos andava sempre com uma lãmina no bolso. A partir da idade adulta, o cenário não sofreu grandes modificações. A Leatherman foi evoluíndo de modo fantástico, e complexizando os seus modelos, graças ao design e fabrico com ferramentas informatizadas. Há até alguns momentos traumatizantes, como a confiscação, em Heathrow, do modelo Wave, na altura o topo da Leatherman, comprado em Darwin, em 1999, para comemorar a evacuação de Timor. No entanto, esta relação de intimidade com a Leatherman teve sempre um ponto fraco. As lâminas são perfeitas, atraentes, eficazes, mas têm aquela impressão do produto americano, aquela exactidão de série de linha de montagem da Ford que as torna demasiado mecânicas. Mas, realmente, os dois problemas, nestas últimas décadas, foram a incapacidade de aplicar e comunicar a paixão. Em relação ao primeiro, não é realmente muito conveniente andar por aí nas ruas a espetar bandidos, apesar de alguns o merecerem. A salvação, neste território prático, foi o pequeno quintal alentejano, cujas escassas árvores e plantas bravas sofrem regularmente verdadeiras chacinas, especialmente nestes últimos anos, graças ao entusiasmo do p.selvagem. A comunicação é um problema ainda maior. Janelas de oportunidade como o "Kill Bill" têm sido exploradas em jantares e outros encontros, mas ao fim de dez minutos de elaboração teórica sobre a estética e história da lâmina, os comentários são invariavelmente os de que "não sabia que tinhas essa parte de cromo". Enfim, uma terrível solidão temática e estética. Como em outros campos decisivos, o que me salvou foi o "Financial Times". Antes do mais, através da tradução e da descoberta. Nas páginas do glorioso londrino tem sido possível aceder à milenar e distinta arte da "katana", que os japoneses continuam a venerar. Mas o papel de salmão tem conseguido dar-me ainda mais felicidade, através da descoberta de culturas de nicho superiores. Entre elas, as de algumas aldeias suecas, que continuam a criar à mão, como verdadeiros artesãos, machados e facas milenares. São objectos absolutamente extraordinários, tanto no cuidado estético, como na maximização da funcionalidade. Nestas aldeias é mesmo possível frequentar alguns cursos de iniciação. Um bom projecto para o Verão. Outra linha de descoberta, porventura mais importante, é a de que os apaixonados pelas lâminas não o escondem. Assim, através do FT, vou descobrindo que pessoas com a dose regular de lucidez como eu gostam de procurar e olhar para lâminas, e algumas delas, quando possível, compram recantos de floresta ou mato para colocar a uso os seus objectos. Assim, é possível entender que afinal a minha solidão com lâminas tem apenas a ver com a incorporação na cultura e na geografia erradas. O que, certamente, tem solução.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-37672190209461481152011-02-14T11:36:00.000-08:002011-02-14T11:36:29.485-08:00os velhinhos abandonadosA recente descoberta por parte dos media dos velhinhos abandonados é comovente. Obviamente, o buzz mediático - despertado pela descoberta da idosa esquecida durante dez anos - irá desaparecer no momento em que aos casos descobertos nos últimos dias, que os media apresentam como confrangedores, se juntem outras dezenas e centenas de casos semelhantes. Porque a verdade é que devem existir milhares, e só por ignorância ou hipocrisia é que podemos dizer que não sabíamos. O problema é ocidental e urbano, e tem especial relevo em países como o nosso, devido a motivos particulares como as migrações contínuas para os grandes centros suburbanos, o preço absurdo das casas, e o facto de estas terem áreas pequenas. A verdade é que o abandono dos idosos e as crianças é o preço que todos temos de pagar pelo mundo que escolhemos. Fale - se um bocadinho mais com qualquer psicóloga de um colégio particular ou público, e esta confessará que a taxa de crianças sem acompanhamento paternal efectivo é assustadora. O mesmo acontece, claro, com os idosos. Já ninguém tem tempo para eles, quando se multiplicam as necessidades pessoais e profissionais. Aliás, se quisermos levar a questão um pouco mais a sério, o que está a acontecer é a dissolução total da família. E, se tudo correr como o previsto, a geração que daqui a 25 anos chegará a avô, ou seja a minha, ainda sofrerá mais este problema. Na verdade, não podemos estar a educar os nossos filhos para operarem no mundo global, o que é o mais correcto que temos a fazer, e esperar que estes nos levem ao hospital às três da manhã de uma quarta - feira. Deste modo, é de uma tremenda hipocrisia da parte dos media insistirem numa história de fazer chorar as pedras da calçada. É apenas o preço a pagar, e o único modo de evitar esta cobrança das circunstâncias é tentar criar, pessoalmente, e muito antes, mecanismos para que quando esta se manifeste, não o faça de modo muito violento.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-46779830799588070502011-02-12T11:05:00.000-08:002011-02-12T11:05:29.614-08:00Retorno ao dicionárioA vontade é intuitiva, mas imperial. A vontade de criar um pequeno intervalo no tempo e no espaço, e voltar ao território pessoal. Nada melhor para tal do que vasculhar papéis abandonados, procurando para eles uma ordem a que não se submetem. E, depois, ler papéis esquecidos, bem acomodados pela música de Szymanowski, na versão conduzida por Boulez e tocada pela Filarmónica de Viena. E é então que, sem nenhuma razão racional, o dicionário se intromete. O prazer de ler um dicionário com uma ordem que não lhe é natural, da primeira entrada do A em diante. Ainda funciona muito bem, especialmente se estamos a falar da terceira edição do "Dictionary of Literary Terms & Literary Theory", do notável J.A. Cuddon. O autor leva - me especialmente a dois lados. No primeiro, a confirmação de que continuo a saber pouco daquilo que penso que domino. Basta ler as entradas "novel" ou "character" para o confirmar. O segundo caminho é ainda mais interessante. São as descobertas. "Mycterism", "asteismus" ou "calypso" são apenas algumas das milhares de fabulosas lições contidas de Cuddon. Os retornos são importantes.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-17223660326180965442011-01-10T06:16:00.000-08:002011-01-10T06:16:24.865-08:00A SITUAÇÃO INTOLERÁVEL A conjuntura política e económica nacional é intolerável. Duas forças decisivas adoptaram estratégias insustentáveis e estão dispostas a ir até ao fim na defesa dos seus interesses. A primeira força é a dos funcionários públicos, e a sua estratégia é a de recusar participar na austeridade. A segunda força é a do Governo, e a sua estratégia é a de não querer reformar o Estado. Deste nó górdio, apenas pode resultar o caos.<br />
A primeira força revela ter adoptado de modo delirante a fuga para a frente. As revelações, públicas o que ainda é mais fantástico, de corpos públicos de elite, como os juízes e os polícias, de que recusam acatar as medidas de austeridade, são inaceitáveis. A estes corpos de elite, sucederam -se os sindicatos, os directores de escolas e todos os outros, que através do litígio judicial querem impedir a aplicação da austeridade. Quanto a mim, é uma posição extraordinária. Na verdade, não há fuga possível. As contas públicas, o Estado, estão falidos, o que é reforçado por agentes económicos privados débeis, incapazes de inverter a nossa tendência económica depressiva. A única posição possível é a de aceitar o sofrimento e o sacrifício. Para a minha geração, a que tem agora 40 anos, não há outro caminho. Como sabemos desde 1990, esperam -nos pelo menos duas décadas de vida numa economia pobre, com tudo o que isso implica. Mas aceitar a realidade não deve ser uma validação para a adopção de estratégias absurdas. Cabe - nos aceitar o sacrifício com lucidez e dignidade, e tentar fazer o melhor para que os nosso filhos tenham acesso a um país melhor. A segunda força decisiva, o Governo, que tem o poder de decisão administrativo no Estado, mantém uma estratégia de enterrar a cabeça na areia, por calculismo e cobardia política. Na verdade, não é possível pedir sacrifícios, como o aumento dos impostos e a redução do salários, e manter os privilégios de uma gigantesca minoria e de um sistema, o estatal, obeso e ineficaz. O encerramento de estruturas desse sistema e o despedimento de funcionários são condições obrigatórias. Em simultâneo, é imperial a extinção imediata de privilégios supérfluos e irracionais perante a conjuntura em que vivemos. Refiro - me, só para dar alguns exemplos impressionistas, a despesas de representação, prémios e bónus, despesas secundárias, viagens e uso de viaturas oficiais excepto em deslocação oficial fora da área de trabalho do funcionário. A segunda força decisiva não fará nada disto porque, tal como todos os seus congéneres, o partido a que pertence depende do Estado para assegurar a sobrevivência e o trabalho dos quadros desse partido. E é este beco constitucional que mina por dentro o nosso país. Parece - me, pessoalmente, que a única saída é uma associação temporária da sociedade civil, unida num movimento que, respeitando a ordem constitucional, obrigue materialmente os partidos a adoptarem as estratégias que querem evitar a todo o custo. O voto em branco nas eleições legislativas e a recusa de pagar qualquer serviço estatal parecem - me ser medidas prioritárias. Os cidadãos têm de dizer claramente aos seus representantes: "Acabou, rapazes".Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-83962488315384127652010-10-31T10:35:00.000-07:002010-10-31T10:35:59.695-07:00notas de um perseguidor de livros, revistas e jornaisOs perseguidores dos objectos citados no título deste "post" nunca tiveram uma vida simples no nosso país. Lembro - me de que na época em que Portugal estava ainda na pré - história do cosmopolitismo globalizado, à volta de 1990, quando não existia ainda internet e o avião era um transporte de elite, decidi fazer uma assinatura da revista "The New Yorker". Intensas negociações foram necessárias, por telefone também ainda, e a coisa acabou com o preço de 20 "bucks", mas mais 212 de portes de correio, quando os "greens" eram uma moeda forte. Aliás, o mais grave é que a revista, semanal, era - me amiúde roubada pelo carteiro da estação do Estoril, o que me fez perder tardes e tardes para resolver o crime. Enfim, contos da pré - história, novamente. Hoje, as coisas são totalmente diferentes, mas ainda se conseguem manter algumas das dificuldades, isto é da beleza do mistério de passado recente. Uma é a de vasculhar jornais e revistas em papel, em busca das coisas extraordinárias que se publicam todos os dias. O meu método é o de acumular várias edições do "Financial Times Weekend", lê - los todos de uma vez, e recortar os pedacinhos de papel referentes a livros que podem interessar, para depois os pesquisar através de fontes online. Foi o que andei a fazer esta tarde, e devo dizer que esta colheita de fim de Outubro é entusiasmante. Temos antes de tudo o mais "Kamchatka", do argentino Marcelo Figueras, que volta ao tema da guerra suja argentina, o período da ditadura militar, visto por os olhos de uma criança, com um enorme fascínio por Kamchatka, uma cidade russa presente no jogo de mesa "Risco". Este texto interessa - me particularmente por lidar com uma tentativa de transportar para a ficção objectos e manifestações, neste caso o jogo Risco, que fazem parte da nossa vida. Tenho tentado fazer o mesmo com obras de arte, videojogos e músicas que me tocam, sem no entanto, acho, grande sucesso. Segue -se "Every Secret Thing", de Gillian Slovo, a ficcionista sul - africana, filha de Joe Slovo um dos primeiros brancos sul - africanos anti apartheid. O livro é a história da familia de Gillian, ou seja também uma história do apartheid. Mais uma vez, o texto interessa - me por razões particulares. Acredito que através das memórias de sul - africanos, nigerianos e outros conseguimos ir um pouco mais longe no conhecimento da África portuguesa no século xx, e colmatar assim a falta de memórias e biografias que temos. "Air", de G Willow Wilson, é outro universo. É aquilo que agora se chama uma "graphic novel", que lida com o sonho e as realidades alternativas, e que nós no antigamente dizíamos ser BD. Esta distinção é importante, já que G Willow Wilson vem da escola americana, que nos últimos 10 anos se colocou a léguas, em potência do argumento e qualidade do traço, da escola franco - belga, que é a minha. Enfim, é a vida. "The SS: a New History", do historiador Adrian Weale, chamou - me à atenção por se dedicar ao conhecimento de uma das forças mais profissionais de investigação e informação da história recente, e que hoje parece ter sido soterrada na história, a não ser nos círculos skinheads. O que mais me interessa são os métodos de obtenção de informação das SS, especialmente a tortura, já que esse é um dos objectos da minha tese de doutoramento. "Stalling for Time" é puro "vintage" editorial norte - americano, neste caso as memórias de um negociador de reféns do FBI. É extraordinário como os americanos conseguem pegar em vidas interessantes, e usando técnicas perfeitas de recolha de informação e tratamento de texto, gerar obras que nos prendem da primeira à última página. Tenho tentado partilhar estas técnicas no mercado português, gerando o entusiasmo em alguns aprendizes, mas sem grande sucesso junto das editoras. Por último, "The New Machiavelli: How to Wield Power in the modern world", escrito por Jonathan Powell, que foi o chefe de gabinete de Blair. O conhecimento de como é efectivamente exercido o poder sempre foi prioritário para mim, porque é aquele a determinar o mundo em que vivemos. A obra de Powell vem muito bem referenciada. E fica assim concluída a recolha de uma tarde de prazer e trabalho. Como é bom folhear página atrás de página de jornal ou revista e fazer aquela descoberta iluminante que saiu mais um livro que nos possibilita grandes hipóteses de decifrar mais um bocadinho daquilo que nos intriga.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-76892920058595936622010-10-03T10:36:00.000-07:002010-10-03T10:36:16.609-07:00alguns frames de TarkovskyNão há um momento de "Stalker" que não pertença a um cenário de intensa beleza, embora toda a realidade visual do filme reproduza a fealdade de um mundo pós - Apocalipse. Tarkovsky manipula a luz baça, a sujidade entranhada e densa e a textura destruída da cidade urbana contaminada de um modo que torna cada imagem uma fusão da fase desesperada de Turner, da intensidade de Rothko e do realismo de Hooper. Na Zona, o pedaço proibido do território onde se esconde o segredo, Tarkovsky mantém o encantamento: a natureza surge maravilhosa ou enigmática, as paisagens e materiais industriais envoltas numa escuridão de fealdade que é tão fascinante como bela. Cada frame do filme terá sido, sem dúvida, inspiração maior para tantos outros filmes e objectos de arte que, de repente, começam a surgir no nosso pensamento. Coloca - se então o problema da fixação, da circulação e do acesso. "Stalker" é um filme fixado numa película que um dia irá desaparecer, e que dificilmente terá a oportunidade de ser exposta numa parede de um museu onde se guardam as memórias visuais maiores. Surge - nos a tristeza de Tarkosvsky não ter agido. Não ter isolado umas dezenas de frames do seu filme, e fixado a sua matéria em tela ou papel. Para que a beleza fantástica daqueles lugares e rostos pudesse existir para além do rolo de um filme.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-25131075001984109692010-08-12T11:20:00.000-07:002010-08-12T11:20:13.668-07:00o contador relutante<div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Sobre Ruy Duarte de Carvalho, publicado originalmente no "Independente", em 2001</span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><br />
</span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O contador relutante<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Temporariamente residente em Portugal sem que quase ninguém dê por ele, exilado num escuro, anónimo, poeirento e vazio gabinete do edifício de Antropologia da velha universidade de Coimbra, está um angolano que teria muitas histórias fantásticas para contar, se tal fosse a sua vontade.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Infelizmente, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, é mais fácil encontrar Ruy Duarte de Carvalho num labirintico e decadente imóvel da universidade de Coimbra do que lhe arrancar alguma coisa palpável sobre os seus 50 anos de filho de colonos que lutou pela liberdade da sua pátria africana, a esperança “numa ideia de Angola” que o mantém vivo, a poesia hermética, a ficção que nos traz mundos pouco habituais, ou a investigação antropológica no sudoeste angolano, de que resultou um dos mais belos livros de aventuras da literatura portuguesa dos últimos anos.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Para se chegar a Ruy Duarte de Carvalho entra-se pela enorme porta de madeira do departamento de antropologia, inquire-se junto das quatro funcionárias que tagarelam junto ao aquecedor eléctrico, admiram-se de passagem sequências enormes de belos azulejos com motivos azuis que decoram as paredes das escadas, ultrapassa-se um enorme, largo e escuro corredor, abre-se a porta onde está escrito “Antropometrista - gab 318” e encontra-se uma figura alta, elegante, magra, com uma ligeira barriga, presumivelmente construída pela cerveja angolana,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>uma barba branca cuidadosamente aparada, a compensar alguma calvice na região frontal do crâneo, mas a condizer com uns óculos de aros redondos. A figura veste de preto, com um bom gosto ascético, e vê-se que está em casa neste cenário despojado. Ela e o espaço parecem ter sido feitos um para o outro. Talvez seja a luz escassa, a velha cadeira de madeira, ou o silêncio que predispõe para ouvir histórias de uma longitude longinqua, pausadas por fumaças saídas do cachimbo do contador. A verdade é que, seja por que motivo for, o gabinete do antropometrista é um cenário único. Um pouco semelhante aos gabinetes clínicos dos velhos hospitais públicos portugueses, depois do médico libertar boas notícias. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Pena é que nada disto interfira com o homem quando dele se querem revelações, e que o percurso para as conseguir seja ainda mais sinuoso que os corredores da universitas. Ruy Duarte de Carvalho tem a sua alma e o seu percurso protegidos por coletes à prova de curiosidade, seja esta de leitor, ou de profissional. A sua delicadeza, o seu sentido de humor apuradissimo, a sua capacidade de encantar com histórias, até a sua camaradagem, que se percebem quando está envolvido numa conversa sem consequências, desaparecem quando o diálogo não é para ser só um momento a dois. As barreiras com que se protege são várias: Há primeiro o autor “snob” que defende estar tudo nos seus livros, não admitindo a importância de esclarecer pormenores ou fornecer algumas pistas sobre as origens das suas narrativas. Há, a par e passo, o intelectual cosmopolita e simultaneamente periférico que, fazendo uso de todo o arsenal linguístico que possui, à base de conceitos teóricos e categorias cientifícas, consegue responder a inúmeras perguntas sem nunca mostrar o que pensa. E, há igualmente o lutador pela liberdade do seu continente, em permanente descoincidência de rumo com o poder,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>que sabe que em África as palavras ainda têm muito peso. Ruy Duarte de Carvalho vigia-se a si próprio, e é muito disciplinado nesse exercício. O preço são os cigarros Camel que desaparecem velozmente, e o cachimbo trincado.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">No entanto, é possível, mesmo assim, contar com ele para descrever pedaços de um mundo a que muito poucos conseguem pertencer.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Ruy Duarte de Carvalho nasceu em 1941, nas terras do Sul de angola, perto de Moçamedes e do deserto do Namibe. Os pais eram portugueses, e viveram sempre relacionados com a terra, tendo o pai ocupado a posição de regente agrícola. “Razões da cabeça e do coração, que às vezes não são as mesmas”,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>como ele próprio diz, levaram cedo o jovem Ruy, então com 18 anos, a estar inequivocamente do lado “dos angolanos, dos independentistas e dos africanos”. Racionalmente, diz que a vida o colocou do lado dos que estavam a ser oprimidos. Emotivamente, aquilo a que chama a “teoria do arrepio”desfez-lhe todas as dúvidas. “Quando um jovem de 18 anos se arrepia ao ler certos poemas, o seu destino está determinado. Eu tinha uma alma angolana”. Viriato da Cruz e Aires de Almeida Santos foram os poetas que o puseram no caminho.Acompanhou o MPLA, nunca se arrependeu da sua escolha. “Sou angolano. É a minha casa. Vou lá ver se a luz está apagada”. Para ele é límpido, tudo “corresponde a uma fidelidade a determinadas referências”.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">No entanto, hoje como ontem, a sua alma não o cega. Na sua casa na Maianga, um dos bairros mais carismáticos de Luanda, na cátedra de Antropologia da universidade da capital do seu país, ou nas inúmeras viagens que faz, sabe que o sonho vai sendo destruído por uma terrível realidade de guerra, fome, destruição, para indicar só alguns chavões mediáticos que não deixam de se aplicar com propriedade ao dia a dia angolano. Diz que a tristeza se gere não perdendo de vista “os verdadeiros problemas angolanos”, mantendo uma permanente “atitude muito crítica” e fazendo recurso de “uma grande ironia”. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Acrescenta, com ardor na voz, que o que se passa em Angola é igual ao que se passa no Congo ou na Serra Leoa, correspondendo a “uma sequela de um processo de ocidentalização que se mantém”. Para ele, Angola debate-se com a falta de alternativas políticas e económicas, mas não é isso que o faz desistir “de uma hipótese de Angola sobreviver como país”.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Confidencia que este combate está todo descrito na sua poesia, da qual “Observação Directa”, disponível em Portugal, é o último volume. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Foi também a vontade de descobrir o que é ser angolano, e a demanda de respostas para perguntas que o acompanhavam desde a adolescência, que o fez abraçar a antropologia. Curiosamente, começou pelo cinema – na sua biografia pode-se ler que produziu vinte horas de cinema documental – que considera uma óptima ferramenta para conhecer povos e modos de vida. No entanto, foi a antropologia – intervalada com outras actividades, como a regência agrícola, porque “os anos têm muitos dias”- que o seduziu definitivamente, já que lhe fornece “os instrumentos para tratar a diferença” e lhe permite ir à procura, com sentido, “do cidadão angolano”. Estudou a disciplina em Paris, entre 1979 e 1986.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De regresso à sua terra, bem apetrechado, Ruy Duarte de Carvalho foi, a partir de 1992, ao encontro de um povo que esteve sempre atravessado na sua vida: Os Kuvale do Namibe, povo da lança, guerreiros, nómadas, pastores e angolanos como ele. O antropólogo conhecera-os na sua infância, tinha ouvido algumas das suas epopeias em conversas de mato e arredores, filmara alguns deles em 1975. Entre 1992 e 1997, vivendo longas expedições pelo mato e pelo deserto, viveu com os kuvale tanto quanto eles permitiram, observou-os, recolheu os seus depoimentos. Depois, durante um ano, escreveu um livro. “Vou lá visitar pastores”, editado em Portugal pela Cotovia, é um livro único, com a mesma magia e beleza estranha que o “Breviário Mediterrânico” (edição Quetzal) Predrag Matvejevitch.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Um dos fios condutores da escrita, que tal como a de Matvejevitch rouba coisas à ficção e à ciência, é todo o mundo Kuvale, donos de uma cultura pastoril e guerreira, mas também de resistência “porque preservam os traços de uma economia e de uma cultura pouco afectada pela colonização e pela desarticulação da sociedade que se deu após a independência”, explica o antropólogo. É fascinante encontrar nas páginas o minucioso trabalho de campo de Ruy Duarte de Carvalho, que disseca as complexas hierarquias dos clans e das famílias kuvale, as ainda mais complexas relações de poder, parentesco, amor e familiares, o quotidiano dos pastores e os seus trajectos, os roubos de gado e consequentes punições e, acima de tudo, os fascinantes rituais e partilhas da carne, o único verdadeiro bem que possuem. Está nas páginas descrito todo um povo diferente, que mantém um equilíbrio na sua sociedade e nos lugares que habitam. Todo o acto tem uma razão, e um preço.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Mas “Vou lá visitar pastores” é muito mais que só observação participante dos Kuvale. É também o diário de um angolano intelectual que deixa a cidade, que viaja num Land Rover acompanhado pelo seu ajudante Paulino, dorme na tenda, adormece no deserto, sofre com o calor, em busca dos seus. “Eu cresci ali e observo concidadãos meus. Estamos implicados”.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Durante aqueles cinco anos, Ruy Duarte de Carvalho percorreu as inúmeras picadas do Namibe, esperou pela altura certa para falar com os homens certos, escutou confidências e histórias míticas, observou as festas, onde às vezes também era convidado. “A confiança com os kuvale é uma manta que se vai tecendo muito lentamente”. Com um lápis e o bloco sempre na algibeira, e um gravador para todas as entrevistas. “Nas entrevistas, anoto todos os espirros, exclamações, suspiros. Um suspiro pode ser mais revelador que horas de palavras”.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Realizou um daqueles projectos que perseguem a vida inteira certos homens, o que é um feito. E teve ainda tempo para ser feliz. “Estar no deserto, sair da tenda de madrugada, pelas 5 horas, antes do mundo acordar, e beber um café, é qualquer coisa... “.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Poder-se-ia pensar que “Vou lá visitar pastores” encerraria o capítulo do Sul. Mas não. Nesse inesgotável bloco notas que é o cérebro ficaram alguns apontamentos que mereciam ficção. Daí nasceu “Os papéis do Inglês”, agora editado pela Cotovia, gerado pela leitura de um conto de quatro páginas de Henrique Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês, Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de real, mas os livros costumam ser assim.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="tab-stops: -72.0pt -36.0pt 36.0pt 72.0pt 108.0pt 144.0pt 180.0pt 216.0pt 252.0pt 288.0pt 324.0pt 360.0pt 396.0pt 432.0pt 468.0pt 504.0pt 540.0pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua","serif"; font-size: 16.0pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o mundo acordar. E continua a batalhar pela “hipótese que justifica a minha vida: Angola”. Foi uma das poucas revelações claras que fez.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-53050419056164949272010-07-22T10:29:00.000-07:002010-07-22T10:29:28.908-07:00os guerreiros na praia longe de casaFoi em 1965 que Sol Yurick, um escritor contemporâneo injustamente esquecido, publicou "Os Guerreiros". A história, modelada num clássico grego, trabalha essencialmente na descrição do regresso a casa através de território desconhecido e hostil de um "gang" juvenil de Nova Iorque. Yurick, que depois de Asbury é talvez o ficcionista que melhor conheceu o imaginário, o pensamento e a acção dos membros de gangs, concentra - se no que provoca a violência contínua exercida pelos guerreiros ao longo do seu caminho. Em termos muito simples, os guerreiros estão longe de casa, o que lhes provoca medo e, ao mesmo tempo, num paradoxo que nunca conseguem resolver, vontade de exibir valentia. Não há manual de compreensão mais adequado para a periódica violência de Verão nos transportes públicos e zonas costeiras da área metropolitana de Lisboa do que a ficção de Yurick. Na verdade, os nossos guerreiros metropolitanos fazem nos dias de calor um longo percurso que os afasta de casa, que os afasta muito de casa. O medo e a bravata, a necessidade de mostrar as suas medalhas, dominam -nos. Deste modo, o fenómeno que é já uma tradição metropolitana lisboeta de Verão não deve ser reduzido apenas a um objecto de segurança, ao contrário do que tem sido até agora, e também não se deve esperar que tenha alguma resolução eficaz. Na verdade, se excluirmos o facto de que a verdadeira questão é a de que porque razão temos guerreiros, tema que suplanta o espaço deste post, o fenómeno é, antes de tudo o mais, uma consequência da mobilidade urbana. Quem conhece as praias da Linha de Cascais, sabe que o fenómeno existe há mais de 30 anos. A única coisa que mudou foi o perfil dos guerreiros. Curiosamente, eles sempre vieram de zonas problemáticas da área metropolitana. Mas, até há 10 anos atrás, vieram das zonas perto da linha de Comboio. Agora, surgem das zonas contíguas às ligações de mobilidade possibilitadas pela expansão do metropolitano, e pelo interface Margem Sul - Cais do Sodré. Assim, aos guerreiros foi permitido caminhar do modo simples e rápido em percursos que no passado recente estavam desconectados, obrigavam a mudanças de transporte e eram caros. Digamos que a passagem dos guerreiros é um efeito colateral do progresso da rede pública de mobilidade, de que Lisboa tanto precisava. A aventura periodicamente violenta dos nossos guerreiros é também um problema de falta de investigação científica e técnica. No primeiro campo, o científico, precisamos que sociólogos, antropólogos e geógrafos, entre outros, nos encontrem, através de trabalho de terreno, respostas para alguns enigmas sociais estanques. Precisamos de saber porque é que numa praia onde cabem largos milhares de pessoas, apenas algumas exercem violência. Precisamos também de saber porque é que há mais violência nos transportes e praias de Lisboa e Cascais do que na Costa da Caparica. Precisamos igualmente de saber se os guerreiros são reincidentes ou se surgem sempre novos "wannabe". E precisamos finalmente de saber que relações os guerreiros têm entre si. Ao nível da investigação técnica, temos também um número considerável de questões a colocar. Por exemplo, no domínio dos transportes, será que passes de Verão, mais carruagens de comboio e portas fechadas entre carruagens poderiam dar contributos para a redução da violência e do crime? E outro tipo de equipamentos nas praias, iriam permitir concentrações e afastamentos que provocariam um clima de maior tranquilidade?<br />
Em paralelo, obviamente que o trajecto de Verão dos nossos guerreiros é um problema maior de segurança. Os crimes são irrelevantes, mas a violência é tremenda, o que provoca um enorme sentimento de medo. Assim, causou - me especial surpresa que a recente operação policial nos transportes públicos tenha provocado uma atenção muito limitada dos canais de informação. Na verdade, as forças policiais fizeram o que tinham a fazer. O único modo de parar o percurso dos guerreiros é estar junto deles do começo, junto às suas casas, até ao destino final. E o único modo de lhes retirar o medo e a vontade de exibir capacidades é fazer -lhes sentir que não têm hipótese alguma de desvio. No fundo, é a aplicação a uma zona específica, transportes e praias, da teoria das janelas partidas. Assim, a operação policial limitada que foi feita tem de passar a ser sistemática, apoiada em boa informação. Não irá eliminar todos os actos de todos os guerreiros, mas irá mostrar -lhes que não estão em território sem Lei. O investimento policial no percurso dos guerreiros tem um fundamento muito poderoso. É que a manter -se o modo como os guerreiros viajam e apanham sol, irá acentuar - se ainda mais a clivagem social e étnica nos transportes públicos e praias da grande Lisboa que só percebe quem há mais de 20 anos os frequenta.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-33898797884637399452010-05-22T09:19:00.000-07:002010-05-22T09:19:51.777-07:00alguns caminhos da memóriaNo mesmo momento em que Portugal parece estar cada vez mais uniformizado, ao nível das ideias e do imaginário, pedaços marcantes da memória e acção social colectiva das últimas décadas, coincidentes no tempo, parecem estar a percorrer caminhos distintos. Estes pedaços dizem todos respeito ao período 1940 - 1980, um tempo onde a história nacional portuguesa acelerou. Dois dos pedaços que gostava de tratar aqui são a presença portuguesa em África e a importância da esquerda radical nos contextos político e social. A África portuguesa foi, até há muito pouco tempo um imenso território histórico vazio no imaginário e conhecimento dos portugueses nascidos depois de 1980, com excepção da Guerra Colonial, claro. Na verdade, toda a complexa presença portuguesa em terras africanas, exercida ao longo dos séculos, parece ter desaparecido de repente, como se nunca tivesse existido uma ligação. Assim, nos últimos anos, têm acontecido duas coisas distintas. Por um lado, o afastamento entre a sociedade portuguesa maioritária e os países africanos, fazem com que realmente um fosso definitivo tenha sido construído. Não há hoje uma ligação construída todos os dias, por múltiplos laços afectivos e sociais. Mas é no terreno desta separação, que começam a surgir as provas das ligações profundas e antigas. Refiro - me às, finalmente, publicadas investigações históricas, como a de Cláudia Castelo, que, na senda do trabalho singular de Maria Emília Madeira Santos, trazem finalmente à partilha os dados possíveis para a decifração desse enigma polifacetado que é o dos portugueses africanos. Neste campo, o da experiência africana portuguesa, será preciso esperar ainda algumas décadas, para vislumbrar qual será o contributo dos filhos de africanos nascidos em Portugal, e o dos portugueses que agora chegam a África. Por outras palavras, será talvez nas próximas décadas que poderão ser mais claramente definidas a importância de África para os portugueses e, simultaneamente, a quantidade de memória que será partilhada.<br />
Ao mesmo tempo, a esquerda radical, que teve em Portugal quando muito 15 anos de acção, é outro enigma do qual ainda não sabemos quanta memória será conhecida. A uma visibilidade enorme de alguns dos seus membros corresponde, inversamente, um quase desconhecimento das suas práticas e até, em alguns casos, ideias. À medida que alguns dos seus elementos mais importantes vão morrendo ou envelhecendo, não têm surgido documentos de conhecimento, excepto aqueles produzidos pela imprensa, ou algum investigador mais solitário, como é o caso do jovem Miguel Cardina. Sobre este tema, o enigma continua suspenso, e é também extremamente curioso acompanhar o que trarão as próximas décadas no campo do conhecimento, se um quase deserto, se novas zonas de claridade. Para o regresso da memória, isto é para um conhecimento livre e científico do passado que permita a entrega de uma memória livre de prévios juízos ideológicos e marcas de poder exercidos em sombra, são necessárias várias condições, que muito poucas vezes são reunidas por aqui. Antes do mais, um investimento financeiro e logístico sério no trabalho dos investigadores. Depois, a eliminação de uma particularidade muito portuguesa. De facto, para uma concentração unicamente científica nos temas que importa investigar para que a memória conhecida não seja antes editada, terá que antes existir uma eliminação das linhas mestras ideológicas e intelectuais que ainda hoje continuam a determinar, em cumplicidade silenciosa com inúmeros círculos de poder com património investido nesses temas, o trabalho de investigação, impondo temas, proibindo outros, jogando assim um papel decisivo no que se conhece e no que vai sendo deixado na bruma do tempo. Com estas condições reunidas, a memória deixará de ter temas sagrados e temas tabu, e aquilo que hoje somos será conhecido de forma muito mais profunda.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-567625686920402932010-05-07T03:43:00.000-07:002010-05-07T03:43:56.637-07:00Decifrar RodriguesDecifrar a lógica dos dois actos do deputado Ricardo Rodrigues - o do furto dos gravadores e o da explicação pública dos seus motivos - obriga a procurar indicadores singulares. Na verdade, o primeiro indicador a seleccionar é o de que os actos são tão extraordinários que escapam à maior parte das referências racionais com que estamos habituados a lidar. Por outras palavras, poderão ficar para sempre sem explicação, tirando aquela que o autor dos actos construir para si e para o espaço público. O contexto é o de uma entrevista de uma revista semanal de informação, a "Sábado", cuja objectivo é confrontar o entrevistado com questões incómodas da sua vida pessoal e profissional. A entrevista é uma das secções simbólicas da revista, existindo há bastante tempo. A linha editorial da entrevista foi cumprida com Ricardo Rodrigues. O deputado reagiu mal, como acontece com a maior parte dos entrevistados neste formato, e terminou abruptamente a entrevista, levando consigo os gravadores dos jornalistas onde tinha sido gravado todo o conteúdo do acto. O único indicador racional que conseguimos isolar é o de que ao roubar os gravadores, o deputado tentou eliminar a entrevista. Tentou apagar definitivamente a conversa onde tinha participado. Tentou reescrever o passado imediato. É fascinante, sem dúvida. Mas é, para começar a enumerar as razões do acto ser impensável a partir de indicadores que conhecemos, impossível que o deputado tenha pensado deste modo, porque o mundo social a que pertence não o permite. Reescrever o passado e o presente, durante um período de tempo de média duração, é apenas possível num regime totalitário, onde o poder em exercício consegue realizar o controlo dos meios tecnológicos, da difusão da mensagem, do comportamento dos cidadãos, e de todos os "checks and balances", nomeadamente os que aplicam a Lei. O deputado pertence à Assembleia da República, o sinal mais claro de que em Portugal existem um regime constitucional democrático. Deste modo, podem apenas ser levantadas duas hipóteses, ambas, novamente, a partir de indicadores anormais. Na primeira, o deputado, quando confrontado com uma situação limite, aquelas escassas onde verdadeiramente nos revelamos, mostra que não é capaz de lidar com condições básicas democráticas. Na segunda, o deputado mostra que se acha acima ou que é capaz de eliminar as condições básicas democráticas. O segundo acto, o da partilha pública das razões que levaram à execução do primeiro acto, obriga à procura de indicadores ainda mais singulares. Em verdade, qualquer que seja o rastilho pessoal do deputado que o levou a actuar, não há nada para partilhar, a não ser um pedido de desculpa e a confirmação pessoal de entrada num período de afastamento de funções públicas. O deputado preferiu construir uma justificação para o seu acto, fundamentada numa resposta emocional a uma violência psicológica intensa exercida pelos jornalistas. É extremamente difícil analisar este argumento, e qualquer indicador a que possamos recorrer é demasiado singular, de novo. A violência psicológica faz parte do quotidiano pessoal e especialmente profissional de todos nós, estando longe de nos garantir o direito de retaliar fora das regras. Assim, ao avançar com este argumento, o deputado parece mostrar que acredita que as suas razões podem ser acolhidas pelos cidadãos, ou que acredita que o caos em que está transformado o espaço público nacional é condição suficiente para que a mensagem que está a espalhar consiga eliminar ou atenuar o acto que cometeu. Qualquer destas hipóteses é verdadeiramente singular.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-7249040719400928182010-04-09T03:57:00.000-07:002010-04-09T03:57:14.294-07:00o chinaman e a extinção dos limites do multiculturalismoÉ quase um axioma para qualquer cidadão ocidental minimamente atento que a melhor hipótese de sobrevivência de sociedades velhas e gastas como a portuguesa está na injecção de novo DNA. Deste modo, a militância activa pela opção multicultural está entre aqueles que considero como os meus deveres essenciais. Antes do mais, nas escolas, especialmente nas de elites, e no mercado de trabalho. Em termos muito rudimentares, a ideia é a de que integrar a diversidade enriquece toda a gente, e quanto maior conhecimento for adquirido por todos os diferentes, mais dinâmica fica a sociedade, isto é, todos nós. Além de que, claro, a uniformidade é monótona. Mas mais interessante ainda, dizem os teóricos, é conseguir a combinação quase mágica entre novo DNA e o melhor dos traços nacionais da sociedade acolhedora. Um palco de combate essencial para esta luta é o bairro, claro, já que inúmeros estudos científicos e empíricos mostram que a integração resulta sempre melhor quando o Outro é aceite numa pequena comunidade local, ou seja, a rua, o bairro, a zona. Daí que defender a vinda de imigrantes para uma sossegada rua de um bairro de classe média da ainda mítica mas muito abalada linha de Cascais tenha sido sempre uma aposta pessoal, embora, claro, levante periodicamente as sobrancelhas cépticas de muita gente. Na verdade, mostra felizmente a realidade, os cépticos podem beneficiar do conforto que é garantido pela imobilidade, e têm certamente a sabedoria de que as mudanças geralmente são perigosas, mas a realidade mostra que a sociedade portuguesa é uma daquelas que com maior eficácia consegue integrar toda a diferença, enriquecendo -se de modo decisivo. De facto, no espaço da minha latitude, os brasileiros, os angolanos, os ucranianos e especialmente o chinaman e o seu clã de geometria variável provam que os limites do multiculturalismo são extintos pela poderosa capacidade portuguesa de entranhar nos outros os seus valores básicos de modo rápido e eficiente . Os brasileiros foram recebidos de braços abertos, beneficiando daquela lenda de povo aberto, alegre, improvisador e easy going. É tudo verdade. É fantástico descobrir que aberto significa ter 23 "caras" a viver harmoniosamente num T0, contornando assim a crise económica, alegria que as dj sessions de forró são até às 3 horas da manhã para o bairro todo, o que revela um profundo sentimento comunitário, improvisador que o átrio do prédio sirva para abrir um restaurante de "churrasquinho", o que é um exercício notável de empreendedorismo, e easy going uma aventura impossível de descrever. Os angolanos foram uma aposta pessoal, por razões biográficas. O trio de rapazes que uma noite chegou teve isso em conta. A actividade mais integradora que periodicamente exercem é a de se pegarem à pancada às duas da manhã, com a porta do apartamento aberta, por causa do Benfica, do Sporting e do Amadora, e participam activamente nas culturas juvenis em alta, nomeadamente "kitando" e experimentando até ao nervo os Seat Ibiza durante a noite na nossa extensa rua de 150 metros. Os ucranianos, tenho de admitir, são o meu caso mais complicado. Uma família honrada e trabalhadora, com dois filhos à entrada da idade adulta. Mas, tirando o facto de terem colocado uma corda de estender a roupa que ocupa toda a largura do prédio, onde a cada 48 horas são colocadas três máquinas de roupa preta, o que prova aquele asseio alentejano clássico, não consigo detectar nenhum sinal integrador, até porque as minhas tentativas de meter conversa são sempre recebidas com um "pois, pá". Pelo contrário, o chinaman e o seu clã são o meu motivo de orgulho. Antes de tudo o mais, provaram que as linhas teóricas recentes de comunitarismo urbano estão absolutamente correctas, e abriram uma pequena frutaria de bairro. É extremamente porreiro, vizinho. As velhinhas, que já não se mexem, vão lá fazer o seu avio diário, aprenderam umas palavras de cantonês, e os jovens profissionais urbanos que chegam tarde a casa sempre sabem que às 20h30 ainda podem comprar uma bananinha para comer com o iogurte, ou uma maçã para enfeitar a pizza congelada. É verdade que a frutinha não dura mais do que 12 horas, e feitas as contas os preços são um negócio da china para o vendedor, mas é o imposto do local e da comodidade. Mas o que realmente me encanta é a carrinha de carga, que para mim é um símbolo notável de como o espírito português contamina de modo absoluto todos os que vêm de fora para lutar pela vida. O chinaman, como todos os pequenos empreendedores nacionais de comércio e serviços, têm uma grande carrinha de carga branca, daquelas com uma altura de um 1º andar. Ora, o chinaman tinha um problema: a sua frutaria é na esquina, tinha de descarregar diariamente o material, e como todos nós era afectado por aquela grande calamidade nacional de nunca ter lugar para estacionar mesmo à porta de casa. A princípio, o chinaman parava na passadeira de peões, mas era uma solução precária, porque via que todos nós cumprimos a Lei, e que o grosso da sua clientela são velhinhas que têm horror a atravessar fora da passadeira. Foi aqui que o chinaman e o seu clã mostraram o seu elevado grau de integração, ao revelarem aquele engenho tão especificamente português. O chinaman mandou um dos membros do clã esperar, até conseguir ver um lugar de estacionamento vago mesmo, mesmo na esquina da frutaria. Quando finalmente, ao fim de umas semanas, o lugar vagou, o membro do clã ocupou - o com o pequeno Kia roxo, conseguindo, com uma manobra cheia de yiang, antecipar -se ao almirante reformado que avançava com o seu Honda de 1995, há cinco anos parado no passeio, por debaixo do estore do seu rés- do- chão. Houve uma troca de insultos durante uns minutos, mas nada de extraordinário. A partir daqui, o chinaman provou ser um verdadeiro português. A dinossáurica carrinha branca está fixa no lugar de estacionamento, e serve de armazém da fruta, que várias vezes ao dia é transferida para a frutaria por duas senhoras do clã. À noite, a fruta volta para a carrinha, garantindo assim todas as condições de higiene e ventilação que garantem a sua frescura. Uma vez por semana, entre as 5 horas e as 8 horas da manhã, quando o chinaman tem de ir ao MARL reabastecer, faz - se acompanhar por outro membro do clã, que desloca o Kia roxo para o meio do lugar. O almirante topou a coisa, e tentou um golpe de guerrilha numa madrugada de semana, mas o chinaman pôs -se à frente dele com a carrinha. Deste modo, a situação de lugar reservado prolonga - se já há vários meses. Um analista parcial e resistente à integração multicultural dirá que temos aqui um exemplo vivo de egoísmo, manhosice, mesquinhez e falta de respeito pelo espaço público, inaceitáveis numa sociedade evoluída e tolerante. Mas eu, que recuso que aqueles traços sejam constituintes da personalidade colectiva nacional, vejo apenas um exemplo superior de estratégia, disciplina, tenacidade e individualismo que não só são os traços essenciais de qualquer povo vencedor, como são indicadores do nosso melhor espírito nacional.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-88559337017670280872010-03-10T02:53:00.000-08:002010-03-10T03:35:08.086-08:00algumas hipóteses realistas para o futuro próximoComo é do conhecimento daqueles que amavelmente seguem os escritos deste espaço, tenho acompanhado com a maior concentração possível o debate em torno do futuro dos autores e do livro, que se reacendeu um pouco por todo o mundo quando a Apple partilhou, há algumas semanas, a configuração essencial do IPad, o seu novo gadget. Uma primeira reflexão deu já origem a um post no Sniper ("risco intenso para o escritor português"), mas alguns contributos recentes e decisivos de especialistas obrigam a novas linhas. Para este momento, isolo dois textos particularmente importantes, um publicado no "Financial Times" em 9 de Fevereiro ("A page is turned") e outro de Jason Epstein, o real insider da edição, na "New York Review of Books" de 11 de Março ("Publishing: The Revolutionary Future"). Curiosamente, os dois textos, equivalentes em importância, unem -se numa linha de fundo estrutural, a de que o máximo a que se pode chegar neste momento é a conjecturas com um grau sério de realismo, mas também se complementam. O do "FT" procura dar conta da estratégia dos grandes conglomerados editoriais globais face à existência do texto digital. A investigação trouxe à tona revelações insólitas. A resposta dos grandes conglomerados editoriais é a de que vão manter o modelo de produção assente no papel (edição - impressão - distribuição), continuando a editar no modelo "codex", reservando para o mercado do texto digital apenas a negociação do preço de venda dos livros em formato digital com as entidades que o distribuem e vão distribuir no futuro. Esmiuçando esta estratégia, os editores não vão editar na plataforma digital, estando apenas preocupados, para já, em conseguir a melhor negociação possível com os grandes "players" deste ambiente, como a Amazon e a Apple. É neste ponto fundamental que o texto de Epstein - com o peso de muitas décadas na edição - ganha um interesse maior, já que, para ele, a estratégia dos conglomerados editoriais é um total suicídio. No seu texto, Epstein garante que "the transition within the book publishing industry from physical inventory stored in a warehouse and trucked to retailers to digital files stored in cyberspace and delivered almost anywhere on earth as quickly and cheaply as e - mail is now underway and irreversible. This historic shift will radically transform worldwide book publishing, the cultures it affects and on which it depends". Na sua longa reflexão, Epstein toca em todos os nós vitais da cadeia escritores - editores - distribuição - venda, mas neste "post" apenas consigo fazer alguma reflexão possível sobre os que mais me tocam. O primeiro é que o actual modelo empresarial da edição está condenado. Tal como defendi há umas semanas aqui no Sniper, há alguns traços que convém destacar desde logo. A distribuição e a venda em livraria tradicional são os nós onde haverá mais impacto. A edição será totalmente reformulada, e em lugar da grande editora nacional de gestão vertical, pertencendo ou não a uma multinacional, teremos nichos de editores, ligados além - fronteiras por interesses editoriais comuns, e capazes de juntar numa rede privada e empresarial todas as funções necessárias: pesquisa de autores, edição, comunicação e venda. Aqui, será aparentemente decisivo o modo de venda, com a introdução de modelos como o da expiração da licença e o aluguer, e a protecção do conteúdo face à ideologia do ficheiro gratuíto. O processo não está ainda em marcha porque, escreve Epstein, "the resistance today by publishers to the onrushing digital future does not arise from fear of disruptive literacy, but from the understandable fear of their own obsolescence and the complexity of the digital transformation that awaits them (...)". Para os autores, o futuro próximo é igualmente complexo. No "literary chaos of the digital future", como classifica Epstein, várias tendências aparecem desenhadas. Um ponto essencial parece ser o da obtenção de um "contrato global de direitos de autor", que permita, exactamente, a venda directa do livro digital ne internet, ou seja em todo o mundo. Obtido este, várias possibilidades podem desde já ser vislumbradas. Uma delas é a do o autor "acantonar- se" no seio do lugar virtual de um editor de reputação, capaz de lhe dar visibilidade num directório global como é o Google. Outra, que começa a ser adoptada pelos monstros best - sellers saxónicos, é a do autor, secundado por especialistas, assumir a comunicação e a venda. Qualquer que seja o cenário, a liderança em vendas e notoriedade será sempre dos autores que, como existem já exemplos em Portugal, estejam posicionados para comunicar em todas as plataformas, especialmente na televisão e na rede, e escrevam segundo as regras "mainstream" do momento. Neste cenário, vários problemas graves se levantam. Talvez o mais importante seja o da preservação segura e durável da cultura e do conhecimento, que, sem dúvida, são transmitidos acima de tudo pelo livro. Em que suporte serão transmitidos às bibliotecas os textos, de que modo se garante a sua inviolabilidade eterna, e igualmente de que modo se garante a disponibilidade aos leitores dos "fundos de livros" ( um problema já hoje em dia, devido à alta rotatividade do título em livraria) são temas em aberto. Uma única certeza existe em todo este processo: tal como em todas as outras áreas do mundo contemporâneo, há muito tempo, na verdade desde 1850, que a sociedade humana não acelerava tanto. Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-31217700718348518632010-02-21T10:37:00.000-08:002010-02-21T10:37:17.057-08:00histórias reservadasNa verdade, não é exagero escrever que há pelo menos uma boa história para contar por pessoa. Uma das mais extraordinárias descobertas de leccionar o curso "histórias de família" na Escrever Escrever é a provocada pelo calibre das histórias que cada um tem consigo, por vezes durante gerações. Nesta experiência, que acumula já vários cursos de dez horas, trazendo ao meu contacto várias dezenas de pessoas, é possível detectar duas ou três linhas mestras muito fortes. Uma primeira tem a ver com a exacta coincidência entre a história pessoal e a história de Portugal nas últimas décadas, especialmente com os acontecimentos marcantes, como são a vida em ditadura ou a guerra colonial. Uma segunda é alimentada pelas "questões invisíveis", como a luta das mulheres pela igualdade, as mães solteiras ou a infidelidade. Uma final é construída a partir de momentos marcantes ou familiares marcantes, por vezes com histórias verdadeiramente extraordinárias. O material conhecido ou investigado pelos alunos é luminoso e tanto pode ser usado para memórias ou histórias particulares, géneros tão escassos na edição portuguesa, como para base de partida para ficções com elevado potencial. Contribuir para conceber estas histórias, e para que os seus detentores as passem a texto, é um serviço que se paga a si próprio. Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-70695130688957224142010-02-07T11:19:00.000-08:002010-02-07T11:19:39.661-08:00tentação de controlo e tipologias de influênciaA publicação editada de algumas interceptações telefónicas realizadas pela Polícia Judiciária, sem que se conheça ainda a totalidade destas e o seu conteúdo integral, sobre um hipotético e não provado plano de tomada de controlo, desenhado por um núcleo de poder relacionado com o Primeiro - ministro em funções, de alguns órgãos de comunicação social, é um bom motivo para partilhar duas ou três hipóteses de análise relacionadas com o exercício do poder e da influência no nosso país. A primeira hipótese de análise está relacionada, como não poderia deixar de ser, com o exercício efectivo do poder judicial e de investigação criminal e o confronto destes com a limitação de informação pública imposta pelo segredo de justiça. Se outros casos semelhantes do passado recente não fossem suficientes, o que analisamos neste momento prova sem margem para dúvida que o segredo de justiça clama por reforma imediata. De facto, em boa verdade, a divulgação de um conteúdo limitado das interceptações telefónicas provoca um número considerável de problemas de extrema gravidade, que só poderão ser eliminados com a publicação integral do conteúdo com relevância pública de todas as escutas relacionadas com a investigação realizada. O primeiro problema é a suspeita fundamentada de que alguma entidade, colectiva ou individual, das que formam o núcleo restrito com acesso ao conteúdo das escutas e dos despachos do MP tenha decidido pela sua passagem ao público depois das instâncias judiciais superiores não lhes terem conferido valor, radicalizando assim um confronto de poderes constitucionais e internos, estes últimos dentro do edifício da Justiça, e uma tipologia de influência que são comuns no portugal democrático e que são fundamentados ideologicamente pela interpretação que alguns operadores judiciais concebem para as suas funções, e que não parece ser compatível com o princípio da lealdade que deve nortear o processo judicial. O segundo problema relaciona-se, claro, com o conteúdo revelado das interceptações. Este é conhecido depois de, pelo menos, uma dupla edição, a do operador judicial e a do jornalista, desligado do seu conteúdo integral, e do contexto em que é gravado. Assim, não é aceitável que a edição do conteúdo, que implica acima de tudo inclusão e exclusão de dados, e depende inteiramente da experiência, conhecimento e convicção dos editores, possa ser confundida, como é a partir do momento em que o conteúdo é publicado, com a verdade factual. O terceiro problema é que a passagem para o espaço público do conteúdo das interceptações transforma estas últimas naquilo que não são. Uma interceptação é uma ferramenta de investigação, no sentido em que permite obter em tempo útil dados que norteiam a descoberta de factos, quando muito um meio provisório ou auxiliar de prova, no sentido em que fornece diversos modos de obter dados decisivos, e raramente um meio de prova isolado ou definitivo. Transformar a natureza de uma interceptação, através da publicação do seu conteúdo, dando-lhe assim um carácter infalível e definitivo é incorrecto e perigoso para todos os envolvidos numa investigação criminal.<br />
A segunda hipótese de análise tem directamente a ver com a tentação de controlo por parte do poder político, especialmente do poder executivo, das empresas de comunicação social. Não é intelectualmente honesto escrever, como alguns dos nosso principais comentadores têm feito nos últimos dias, que é original o hipotético desenho de operação que poderá ter sido executado por elementos da confiança do poder executivo em funções. Na verdade, a história democrática do nosso país desde 1974 é também uma história de permanente tentação e execução de controlo da comunicação social, realizada por todos os quadrantes políticos e alguns económicos. As tipologias para o conseguir são, quase sem excepção, as conhecidas, e os níveis de sucesso e insucesso nestes esforços são também de rápida recordação. Ao nível da propriedade, o financiamento directo ou indirecto, através de fundações, empresas ou bancos, nacionais e internacionais, do capital das empresas de comunicação social, bem como das respectivas receitas. Ao nível da hierarquia editorial, a cumplicidade, imposição ou colocação de chefias nos vários níveis das redacções. Ao nível do acesso, a sedução de jornalistas ou a negação de informações. Assim, deste modo, nasceram e morreram empresas de comunicação social, outras mudaram abruptamente de linha editorial, e, finalmente, outras mantiveram-se constantes porque o exercício da influência é de longa duração temporal e mais profissional. Do mesmo modo existe uma relação directa entre o exercício invisível da influência política na comunicação social e o ciclo "produtivo" do poder executivo, e a sua visibilidade súbita e crispada e o ciclo "problemático" deste último. O que poderá haver de novo na mais recente operação, que só poderá ser analisada quando todos os factos forem conhecidos, é alguma sofisticação conceptual, trazida pelo recurso velado a empresas com capital público e a actos de engenharia financeira, aparentemente anulada por um exercício primário de influência por parte dos condutores da referida operação. De qualquer modo, o que é de apontar mais uma vez é que os projectos de jornalismo em Portugal raramente conseguem escapar à asfixia de serem também projectos políticos, um cenário que apenas atormentaria um número apreciável de jornalistas, mas não a totalidade, não se desse o caso de a informação pública ser vital para uma democracia saudável e um controlo do exercício dos mais diversos poderes. <br />
Uma linha de análise derradeira relaciona -se com a obsessão mediática por parte dos diversos poderes, mas especialmente do poder político, já que, porventura, é este que mais depende da opinião pública para a concretização dos seus objectivos. Neste ponto poderiam ser levantadas várias linhas de discussão, mas será talvez mais útil reduzir a análise apenas aquilo que poderemos chamar, à falta de melhor conceito, de círculo virtual. O que se observa repetidamente quando se passam alguns anos de contacto directo com os poderes constitucionais é o fechamento daqueles que ocupam as respectivas funções num círculo virtual fechado, criado pelos próprios, onde, basicamente, circulam apenas políticos, empresários, magistrados, jornalistas e, pontualmente, polícias. Uma mistura da incapacidade de lidar com os efeitos hipnóticos do controlo temporário do poder, uma tentação irresistível de estender a rede de influências e de a tornar dominante, e uma imaturidade intelectual que faz com se torne insuportável a realidade de que a democracia é um permanente confronto de "checks and balances", levam os membros deste círculo virtual a desenvolver obsessões, a conjurar cenários de conspiração e a desenvolver estratégias de eliminação que não pertencem e nada têm a ver com os interesses maioritários e decisivos da sociedade portuguesa. Na verdade, o mais importante de toda esta conjuntura é ser aparentemente nítido que o poder executivo considerou a questão mediática como prioritária na sua agenda.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-64322777009753764972010-02-01T04:02:00.000-08:002010-02-01T04:02:39.650-08:00Risco intenso para o escritor portuguêsCirculam cada vez mais intensamente informações e algumas análises estratégicas sobre o que espera os escritores nos próximos anos. O pano de fundo para tanta incerteza é, obviamente, a revolução tecnológica em curso capaz de virar do avesso todo o processo de produção, e que ganhou algum aceleramento com a chegada do Ipad, a maravilha da Apple de potencial ainda não confirmado. Na verdade, como ainda esta semana John Lanchester escreve no "Financial Times" "ninguém sabe como isto vai funcionar". Várias equações, com fórmulas para as resolver ainda desconhecidas, estão a ser lançadas para as mesas dos envolvidos em todo o mundo, sendo que uma das mais importantes, e a única que tratamos neste texto, é a do cálculo das consequências da passagem do texto a produto digital. A equação poderá ser enunciada do seguinte modo: os leitores adoptam massivamente o texto em formato digital. Aplicando a mesma tendência cultural já estabilizada na música e no cinema, defendem que o produto deve ser gratuito. Aceitando estas duas variáveis como assentes e dominantes do mercado num futuro próximo, é necessário tentar desenhar as hipotéticas linhas mestras da revolução. Começando pelo fim da cadeia, uma extinção ou completa reinvenção das livrarias. No coração do processo de produção, uma diminuição radical do papel das gráficas e das distribuidoras. No centro da cadeia, uma desvalorização das editoras, e uma queda brutal das suas receitas, dando possivelmente origem a micro - empresas especializadas em serviços técnicos, como a detecção de novos talentos, a revisão e publicação nos vários formatos digitais dos textos, ou a "boutiques" com selo de qualidade, criado pelo valor no mercado dos autores que representam. Para o escritor, o cenário do futuro imediato parece ser ainda mais indistinto. À partida, com a eliminação do valor retido pela editora e pela distribuidora, poderá ver a sua margem de receita, que vai hoje dos 10 aos 36 por cento, chegar facilmente a números entre os 70 a 80 por cento. O problema é o de que estará completamente dependente do mercado, isto é do seu sucesso junto dos leitores. Neste ponto, é curioso notar algumas experiências, como os espectáculos em "tour" organizados por Malcolm Gladwell ou Lawrence Wright, que de algum modo tentam replicar o circuito dos concertos das bandas musicais, ou as campanhas de PR à volta de Dan Brown. Na verdade, para o escritor, as questões chave são duas. Se o texto for gratuito, como ganhar dinheiro com ele? E se o mercado ditar o texto, como fará um escritor que tem uma história para escrever, sabendo que esta não será acolhida pelo mainstream? Só pensar nas variáveis da equação é suficiente para perceber que dificilmente escaparemos à revolução num tempo muito próximo. O texto será cada vez mais um produto que será imposto ao mercado. Algumas intensas polémicas surgirão sobre as instâncias de validação que irão surgir para garantir a qualidade do texto ficcional, e o seu apoio através de algum tipo de mecenato. Num mercado pequeno, acorrentado e onde não se assumem as identidades da ficção como é o nosso, a incerteza será ainda mais acentuada, e o risco será muito intenso. Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-13270786438978594222010-01-17T12:15:00.000-08:002010-01-17T12:15:44.427-08:00o elo e o trabalho ficcional com referênciasO elo em Avatar, o filme de Cameron, é desde já uma das maiores criações ficcionais de sempre, e a sua matéria permite arriscar dizer que o será também para sempre. O elo, que explique -se aos que ainda não viram o filme é a ponta da cauda dos membros do povo Na´vi, que lhes permite uma união física e espiritual com os animais e as plantas, tem um poder simbólico duplo. É ao mesmo tempo uma aplicação feliz em matéria do desejo do homem comunicar e estar em união com a natureza e a espiritualidade, e, simultaneamente, um novo membro orgânico que permite visualizar até onde o homem pode ir, utilizando a bioengenharia e a biologia sintética na manipulação do seu dna, para ganhar novas capacidades que o construam como melhor ser. O elo, sendo a plataforma que permite o fluxo espiritual e ecológico, mas sendo matéria que pode ser observada, transforma - se assim num poderoso objecto que dificilmente sairá da memória dos que o viram, e que virá certamente a ser invocado no futuro de mil e uma maneiras. Mas o elo é apenas a criação ficcional chave de um filme que recupera e manipula, com o atrevimento próprio de que só um mestre de Hollywood é capaz, um número considerável de referências a que muito poucos são insensíveis, dado que fazem parte daquilo que observam na sua contemporaniedade ou do seu património vindo da juventude. Neste campo, um exercício interessante a fazer é o de conseguir saber se Cameron e a sua equipa trabalharam com as referências com o objectivo de criar um objecto novo, no sentido de levar essas referências para a construção de uma história radicalmente original, ou se apenas as utilizaram como património universal que sabem que é com o objectivo de garantir o sucesso do seu produto. Esta é, claro, uma questão para a qual não temos resposta. Podemos, no entanto, ter uma avaliação pessoal da eficácia do trabalho com referências. Porventura, a maior desilusão é o trabalho em torno do ser digital que dá o nome ao filme, ou seja o Avatar. Na verdade, Cameron encontra um modo de fazer a ligação entre ser humano e a sua réplica digital, mas o modo como o faz, através de uma câmara que consegue transportar a matéria e o imaterial de um corpo para outro, faz lembrar demasiado a criogenia e a ficção científica dos anos 70. Para mais, neste ponto, a utilização escassa de cenários e paisagens digitais é também um reforço da desilusão. Já noutra dimensão do trabalho com referências, o contexto civilizacional do povo Na´vi é seguro, mas também limitado. Cameron, em algumas entrevistas, fala de que partiu das velhas ficções de Rice Burroughs na selva africana e de "danças com lobos", o épico de Costner, mas, na verdade, na cultura e no comportamento dos Na´vi apenas consigo ver os índios mitológicos norte - americanos, como os apache, a que é dado um toque espiritual africano, nas grandes cerimónias colectivas de invocação do poder da natureza. Aqui faltou a Cameron um toque de genialidade: a construção efectiva de um Outro, de uma nova identidade que pudesse ser observada. Porventura, a maior desilusão é o emprego de referências para a construção do conflito. Três aspectos devem ser aqui mencionados. A chamada ao argumento da obtenção de minérios raros é interessante, mas Avatar não mostra o horrendo do trabalho nas minas, de que a realidade que todos os dias se observa na República Democrática do Congo é um exemplo. As cenas de batalha são primárias e estereotipadas, e este teria sido um campo onde valeria a pena investir, já que o modo de fazer a guerra mudou tremendamente nas últimas décadas. Mas, sem dúvida, o maior desencanto é com a escolha e visualização da tecnologia bélica contemporânea. Cameron está absolutamente certo em trazer para a filmagem a robótica e o emprego da tecnologia e da máquina no campo de batalha, em lugar do homem, mas as armas que apresenta são rudimentares e quase primitivas, quando abundam, na literatura técnica e ficcional, especialmente nos videojogos, exemplos muito interessantes de novas ferramentas de guerra. Apesar de todo este emprego deficiente das referências escolhidas, na minha opinião, Avatar é um filme extraordinário, que me tocou de um modo imenso. Porquê? Creio que as razões são perfeitamente lineares. Mesmo para um ser pouco espiritual como eu, a linha condutora simbólica da história, a mensagem espiritual e ecológica, é muito forte. Mas o factor decisivo, o que realmente é tocante, é a extrema beleza visual de todo o filme. Neste ponto, antes dos mais, Cameron provou que as novas ferramentas tecnológicas de imagem e edição permitem fazer um cinema novo. Mas, o mais importante é que a contratação de uma bióloga para criar o ecossistema de Pandora foi a melhor decisão do realizador. Toda a estrela, toda a sua paisagem e flora, e todo o povo que a habita, são imensamente belos, e a esse efeito encantador é impossível escapar. Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6794520453239464848.post-80653063300815105352010-01-11T03:49:00.000-08:002010-01-11T03:49:42.315-08:00impossibilidade de protecção"A Estrada", escrito por Cormac McCarthy em 2006, e um filme agora estreado em território nacional, tem por tema uma angústia sempre secreta, pessoal e devastadora, aquela que um pai traz em si a partir do momento em que sente que a qualquer momento pode deixar de conseguir proteger o seu filho. Não será arriscado escrever que o quotidiano de Mccarthy contribuiu bastante para a escrita desta história. O autor americano tem, apesar da sua idade avançada, um filho criança. Por outro lado, o cenário de um mundo pós - apocalipse, onde se desenrola a narrativa, é um dos mais debatidos no meio científico onde o escritor está inserido, o do Santa Fé Institute. Mas, na verdade, o que o livro conta é a dor trazida pela descoberta da impossibilidade de proteger um filho ainda indefeso, e a tentativa desesperada de eliminar esta certeza. Perder um filho ou ver sofrer um filho, conta - nos a realidade e a ficção demasiadas vezes, é uma experiência que destrói tudo, até a tentativa de a contar. Um pai enfrentar a sua partida com o filho ao lado é uma experiência distinta, onde existem, pelo menos, dois pontos insuportáveis. O primeiro tem a ver com a descoberta, feita num quotidiano onde a todo o momento se encontram os olhos da criança. O segundo tem a ver com o tempo, já que se o desaparecimento não é imediato, todos os dias começa um novo dia onde se sabe que num dia próximo o filho vai ficar sozinho e indefeso. Transformar este medo e este desespero numa narrativa que pode ser partilhada é uma tarefa quase impossível, daí "A Estrada" ser um livro maior. Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11025933859067434065noreply@blogger.com1