20091223

a vacina não é só uma opção individual

Existem duas razões poderosas para tomar uma vacina, especialmente quando está em causa uma pandemia provocada por um vírus de fácil disseminação, como é o da gripe A. A primeira é bastante simples: a vacina garante uma taxa alta, mas não absoluta, de protecção ao vacinado. A segunda é mais complexa, e, no actual contexto português, tem sido sistematicamente ignorada, especialmente por grupos de referência, como são os enfermeiros e médicos: tomar a vacina é um acto de profundo civismo comunitário, já que corta a pandemia num ponto individual da cadeia de infecção. No que concerne o primeiro argumento para tomar a vacina, há que tentar separar a evidência científica existente, que não pode ser tomada como definitiva, e o ruído argumentativo sem sustentação científica.
O material científico produzido até agora, pelas próprias farmacêuticas, mas também por organismos científicos independentes, de controlo e de investigação, mostra que a vacina é a única protecção eficaz contra o vírus. Mostra igualmente que não foram identificados ainda efeitos secundários que representem um risco presente ou futuro para a saúde de quem se vacina. O "ainda" é muito importante, já que na medicina, como em qualquer área científica, a investigação é permanente, fazendo com que os paradigmas de hoje sejam destruídos amanhã.
Apesar de todo este material sólido, que deve ser constituído como matéria importante de apoio a uma decisão, o fenómeno, que é global, dos "cidadãos e pais anti - vacina", tem um peso enorme, não só em relação a esta vacina, como no que concerne a maior parte delas. O movimento, extremamente organizado em muitas paragens, como os EUA, suporta - se numa série de argumentos, da crença que as vacinas provocam doenças, totalmente refutada pelos vários estudos científicos, à convicção de que o objectivo é o lucro das farmacêuticas, quando a vacina é o produto menos rentável do seu catálogo, até à aplicação de uma ideologia, por exemplo anti - capitalista, ao objecto "vacina". E, claro, basta uma pequena sondagem junto do meio privado de cada um para encontrar argumentos como os seguintes: "os meus filhos são saudáveis, não precisam", "a vacina não protege nada", "o médico acha que não é fundamental".
O efeito deste argumentário numa comunidade, quando é aceite por um grupo considerável de cidadãos, é devastador. Um artigo recente na Wired (An Epidemic of Fear, Amy Wallace, Outubro de 2009) é uma boa introdução ao que está em causa. O principal facto a reter é que sempre que uma vacina não é tomada, a protecção desaparece, permitindo, entre outras consequências, o regresso massivo de vírus dominados durante décadas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o retorno da rubéola em algumas regiões americanas.
A reflexão em torno do segundo argumento para tomar a vacina devia ser profunda, mas, especialmente em Portugal, é totalmente ignorada. Um artigo científico publicado em 2002 no "The Journal of Infectious Diseases", que teve como grupo de pesquisa 3292 pessoas que contraíram rubéola na Holanda, é cristalino. A principal conclusão é que é mais BAIXA a probabilidade de uma pessoa não - vacinada contrair o vírus numa comunidade vacinada, do que a possibilidade de o mesmo lhe acontecer quando está vacinada mas circula numa comunidade não vacinada. A evidência parece definitiva no ponto em que não tomar a vacina significa que quem não o faz está a colocar em perigo toda a comunidade com que se relaciona. Assim, o acto de vacinação é também uma acção cívica e comunitária.
Deste modo, no actual contexto português, devemos sublinhar várias perplexidades, das quais destaco apenas algumas. Antes do mais, porque é que as entidades públicas não proporcionam informação mais personalizada e rigorosa aos cidadãos, que lhes sirvam de apoio à decisão. Segundo, como é que médicos e enfermeiros podem recusar a vacina, e tornar essa decisão pública, sem que sejam alvo de um inquérito pessoal por parte das suas tutelas. Terceiro, como é que médicos de família e pediatras, decisivos na influência que possuem junto dos seus pacientes, aconselham a não tomada de vacina, sem que tenham de fundamentar oficial e formalmente a sua opção. Quarto, como é que os indivíduos de vários grupos profissionais, com contacto directo permanente com vários níveis de população, podem tomar sozinhos, em nome da liberdade individual, uma decisão que não os afecta só a eles.

20091215

aventureiros desconhecidos

Há homens que partem em silêncio apesar de terem realizado feitos gloriosos. Francisco Frias de Barros, engenheiro geógrafo, faleceu recentemente, e em total silêncio mediático. O mesmo silêncio que o encerrou a ele e aos seus camaradas de ofício, apesar de terem sido a última geração da grande aventura terrestre africana. Na verdade, é um pouco absurdo ver os americanos a reproduzirem em Hollywood os fantásticos feitos de Mason, Dixon, Burton, Stanley e Livingstone, com o apoio sempre discreto da Coroa inglesa, quando por cá um punhado de bravos fez o mesmo e muito mais a partir do século, como testemunha, detalhadamente, "Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África", de Maria Manuela Madeira Santos, uma pérola sequestrada nas prateleiras dos alfarrabistas. Foi um pouco atrás da reconstrução desta aventura que há uns anos fui incomodar Frias de Barros, num gabinete silencioso esquecido em Belém. Foram uns dias bem passados, já que facilmente fui contaminado por aquela história. Apesar da sua idade, Frias de Barros tinha uma boa memória, e uma compreensão fácil para a partilha do detalhe que uma boa história exige. E, por outro lado, o gabinete e salas adjacentes guardavam todo o material da aventura, inclusive as notas de campo, o que é uma espécie de tesouro. A epopeia destes homens é na essência simples: andaram nas latitudes desconhecidas de Angola e Moçambique a retirar coordenadas para o império ter um mapa do seu território. Fizeram - no e isso é extraordinário.

20091209

ao serviço total da ideia

uma nova investigação sobre os anos finais de Trotsky (Stalin´s Nemesis: the exile and murder of Leon Trotsky, de Bertrand M. Patenaude), provoca algumas novas reflexões sobre o poder totalitário da ideia. Trotsky não arruinou só a sua vida a partir do momento em que dentro do Kremlin perdeu para Estaline a batalha pelo poder. Na verdade, o carismático líder comunista iniciou ali uma vida de exílio e de fuga que só terminou com o seu assassinato, no México. Mas o que talvez seja mais impressionante é que a decisão de combater pela ideia e pelo poder na União Soviética destruiu também todos os próximos de Trotsky. Com ele para o exílio seguiram a mulher, a única sobrevivente após a sua morte, o filho mais velho e, mais tarde, um neto. A sua primeira mulher e as duas filhas desse casamento foram perseguidas por Estaline, juntamente com os respectivos maridos e filhos. Todos foram assassinados, com excepção de Zina, a filha mais velha, que se suicidou em Berlim. Os dois filhos do segundo casamento foram assassinados. E dos netos, só um, Seva, sobreviveu. Os amigos políticos mais próximos foram também julgados, exilados e mortos. Para Estaline, apagar Trotsky significou apagar todo o seu sangue e todas as suas conexões. Assim, servir uma ideia para o mundo com a vida tornou - se uma realidade, escolhida ou forçada, para Trotsky e os seus.