20110214

os velhinhos abandonados

A recente descoberta por parte dos media dos velhinhos abandonados é comovente. Obviamente, o buzz mediático - despertado pela descoberta da idosa esquecida durante dez anos - irá desaparecer no momento em que aos casos descobertos nos últimos dias, que os media apresentam como confrangedores, se juntem outras dezenas e centenas de casos semelhantes. Porque a verdade é que devem existir milhares, e só por ignorância ou hipocrisia é que podemos dizer que não sabíamos. O problema é ocidental e urbano, e tem especial relevo em países como o nosso, devido a motivos particulares como as migrações contínuas para os grandes centros suburbanos, o preço absurdo das casas, e o facto de estas terem áreas pequenas. A verdade é que o abandono dos idosos e as crianças é o preço que todos temos de pagar pelo mundo que escolhemos. Fale - se um bocadinho mais com qualquer psicóloga de um colégio particular ou público, e esta confessará que a taxa de crianças sem acompanhamento paternal efectivo é assustadora. O mesmo acontece, claro, com os idosos. Já ninguém tem tempo para eles, quando se multiplicam as necessidades pessoais e profissionais. Aliás, se quisermos levar a questão um pouco mais a sério, o que está a acontecer é a dissolução total da família. E, se tudo correr como o previsto, a geração que daqui a 25 anos chegará a avô, ou seja a minha, ainda sofrerá mais este problema. Na verdade, não podemos estar a educar os nossos filhos para operarem no mundo global, o que é o mais correcto que temos a fazer, e esperar que estes nos levem ao hospital às três da manhã de uma quarta - feira. Deste modo, é de uma tremenda hipocrisia da parte dos media insistirem numa história de fazer chorar as pedras da calçada. É apenas o preço a pagar, e o único modo de evitar esta cobrança das circunstâncias é tentar criar, pessoalmente, e muito antes, mecanismos para que quando esta se manifeste, não o faça de modo muito violento.

20110212

Retorno ao dicionário

A vontade é intuitiva, mas imperial. A vontade de criar um pequeno intervalo no tempo e no espaço, e voltar ao território pessoal. Nada melhor para tal do que vasculhar papéis abandonados, procurando para eles uma ordem a que não se submetem. E, depois, ler papéis esquecidos, bem acomodados pela música de Szymanowski, na versão conduzida por Boulez e tocada pela Filarmónica de Viena. E é então que, sem nenhuma razão racional, o dicionário se intromete. O prazer de ler um dicionário com uma ordem que não lhe é natural, da primeira entrada do A em diante. Ainda funciona muito bem, especialmente se estamos a falar da terceira edição do "Dictionary of Literary Terms & Literary Theory", do notável J.A. Cuddon. O autor leva - me  especialmente a dois lados. No primeiro, a confirmação de que continuo a saber pouco daquilo que penso que domino. Basta ler as entradas "novel" ou "character" para o confirmar. O segundo caminho é ainda mais interessante. São as descobertas. "Mycterism", "asteismus" ou "calypso" são apenas algumas das milhares de fabulosas lições contidas de Cuddon. Os retornos são importantes.