20111123

uma solidão com lâminas

Há interesses maiores naturalmente secretos. Por outras palavras, a natureza dos interesses choca com a cultura assente, e quando assim é, a via prudente é a amputação da partilha. Dos meus, o mais sufocado é a paixão por lâminas. Como todos os interesses pessoais maiores, não há propriamente uma identificação clara da origem. Mas entre infâncias no mato, histórias de guerreiros e noites de escuteiros, alguma marca terá sido fixada com profundidade. O percurso da paixão começou pelas más lâminas existentes em portugal, nesses tempos afastados dos anos 80 do século passado. Canivetes de cabo de plástico vermelho, e facas de mato de série. A sedução foi-se mantendo pelo tempo, o que levou a expedições periódicas frustrantes às antigas tabacarias de Lisboa e arredores. Mas, na verdade, o desejo só encontrou objecto à altura quando chegaram os primeiros Leatherman, comprados na primeira versão da Econauta, ou trazidos de paragens europeias, quando nos aviões era permitido transportá-los nos bolsos das calças. Um bom tempo. Os primeiros Leatherman fascinavam pela complexidade do engenho, e pela beleza estética do objecto. No meu caso, são estas as características que fixam e perduram a paixão. Antes do mais, a capacidade do artesão, o seu labor e genialidade. Depois, a beleza material da lâmina. Certamente que o conforto da segurança de ter uma arma, e aquela confusão de sentimentos sempre classificada como "rapazes serão sempre rapazes", terão também o seu peso de influência. Enfim,embora desconfie que estas são propostas teóricas algo limitadas, já que a minha avó aos 80 anos andava sempre com uma lãmina no bolso. A partir da idade adulta, o cenário não sofreu grandes modificações. A Leatherman foi evoluíndo de modo fantástico, e complexizando os seus modelos, graças ao design e fabrico com ferramentas informatizadas. Há até alguns momentos traumatizantes, como a confiscação, em Heathrow, do modelo Wave, na altura o topo da Leatherman, comprado em Darwin, em 1999, para comemorar a evacuação de Timor. No entanto, esta relação de intimidade com a Leatherman teve sempre um ponto fraco. As lâminas são perfeitas, atraentes, eficazes, mas têm aquela impressão do produto americano, aquela exactidão de série de linha de montagem da Ford que as torna demasiado mecânicas. Mas, realmente, os dois problemas, nestas últimas décadas, foram a incapacidade de aplicar e comunicar a paixão. Em relação ao primeiro, não é realmente muito conveniente andar por aí nas ruas a espetar bandidos, apesar de alguns o merecerem. A salvação, neste território prático, foi o pequeno quintal alentejano, cujas escassas árvores e plantas bravas sofrem regularmente verdadeiras chacinas, especialmente nestes últimos anos, graças ao entusiasmo do p.selvagem. A comunicação é um problema ainda maior. Janelas de oportunidade como o "Kill Bill" têm sido exploradas em jantares e outros encontros, mas ao fim de dez minutos de elaboração teórica sobre a estética e história da lâmina, os comentários são invariavelmente os de que "não sabia que tinhas essa parte de cromo". Enfim, uma terrível solidão temática e estética. Como em outros campos decisivos, o que me salvou foi o "Financial Times". Antes do mais, através da tradução e da descoberta. Nas páginas do glorioso londrino tem sido possível aceder à milenar e distinta arte da "katana", que os japoneses continuam a venerar. Mas o papel de salmão tem conseguido dar-me ainda mais felicidade, através da descoberta de culturas de nicho superiores. Entre elas, as de algumas aldeias suecas, que continuam a criar à mão, como verdadeiros artesãos, machados e facas milenares. São objectos absolutamente extraordinários, tanto no cuidado estético, como na maximização da funcionalidade. Nestas aldeias é mesmo possível frequentar alguns cursos de iniciação. Um bom projecto para o Verão. Outra linha de descoberta, porventura mais importante, é a de que os apaixonados pelas lâminas não o escondem. Assim, através do FT, vou descobrindo que pessoas com a dose regular de lucidez como eu gostam de procurar e olhar para lâminas, e algumas delas, quando possível, compram recantos de floresta ou mato para colocar a uso os seus objectos. Assim, é possível entender que afinal a minha solidão com lâminas tem apenas a ver com a incorporação na cultura e na geografia erradas. O que, certamente, tem solução.