20100221

histórias reservadas

Na verdade, não é exagero escrever que há pelo menos uma boa história para contar por pessoa. Uma das mais extraordinárias descobertas de leccionar o curso "histórias de família" na Escrever Escrever é a provocada pelo calibre das histórias que cada um tem consigo, por vezes durante gerações. Nesta experiência, que acumula já vários cursos de dez horas, trazendo ao meu contacto várias dezenas de pessoas, é possível detectar duas ou três linhas mestras muito fortes. Uma primeira tem a ver com a exacta coincidência entre a história pessoal e a história de Portugal nas últimas décadas, especialmente com os acontecimentos marcantes, como são a vida em ditadura ou a guerra colonial. Uma segunda é alimentada pelas "questões invisíveis", como a luta das mulheres pela igualdade, as mães solteiras ou a infidelidade. Uma final é construída a partir de momentos marcantes ou familiares marcantes, por vezes com histórias verdadeiramente extraordinárias. O material conhecido ou investigado pelos alunos é luminoso e tanto pode ser usado para memórias ou histórias particulares, géneros tão escassos na edição portuguesa, como para base de partida para ficções com elevado potencial. Contribuir para conceber estas histórias, e para que os seus detentores as passem a texto, é um serviço que se paga a si próprio. 

20100207

tentação de controlo e tipologias de influência

A publicação editada de algumas interceptações telefónicas realizadas pela Polícia Judiciária, sem que se conheça ainda a totalidade destas e o seu conteúdo integral, sobre um hipotético e não provado plano de tomada de controlo, desenhado por um núcleo de poder relacionado com o Primeiro - ministro em funções, de alguns órgãos de comunicação social, é um bom motivo para partilhar duas ou três hipóteses de análise relacionadas com o exercício do poder e da influência no nosso país. A primeira hipótese de análise está relacionada, como não poderia deixar de ser, com o exercício efectivo do poder judicial e de investigação criminal  e o confronto destes com a limitação de informação pública imposta pelo segredo de justiça. Se outros casos semelhantes do passado recente não fossem suficientes, o que analisamos neste momento prova sem margem para dúvida que o segredo de justiça clama por reforma imediata. De facto, em boa verdade, a divulgação de um conteúdo limitado das interceptações telefónicas provoca um número considerável de problemas de extrema gravidade, que só poderão ser eliminados com a publicação integral do conteúdo com relevância pública de todas as escutas relacionadas com a investigação realizada.  O primeiro problema é a suspeita fundamentada de que alguma entidade, colectiva ou individual, das que formam o núcleo restrito com acesso ao conteúdo das escutas e dos despachos do MP tenha decidido pela sua passagem ao público depois das instâncias judiciais superiores não lhes terem conferido valor, radicalizando assim um confronto de poderes constitucionais e internos, estes últimos dentro do edifício da Justiça, e uma tipologia de influência que são comuns no portugal democrático e que são fundamentados ideologicamente pela interpretação que alguns operadores judiciais concebem para as suas funções, e que não parece ser compatível com o princípio da lealdade que deve nortear o processo judicial. O segundo problema relaciona-se, claro, com o conteúdo revelado das interceptações. Este é conhecido depois de, pelo menos, uma dupla edição, a do operador judicial e a do jornalista, desligado do seu conteúdo integral, e do contexto em que é gravado. Assim, não é aceitável que a edição do conteúdo, que implica acima de tudo inclusão e exclusão de dados, e depende inteiramente da experiência, conhecimento e convicção dos editores, possa ser confundida, como é a partir do momento em que o conteúdo é publicado, com a verdade factual. O terceiro problema é que a passagem para o espaço público do conteúdo das interceptações transforma estas últimas naquilo que não são. Uma interceptação é uma ferramenta de investigação, no sentido em que permite obter em tempo útil dados que norteiam a descoberta de factos, quando muito um meio provisório ou auxiliar de prova, no sentido em que fornece diversos modos de obter dados decisivos, e raramente um meio de prova isolado ou definitivo. Transformar a natureza de uma interceptação, através da publicação do seu conteúdo, dando-lhe assim um carácter infalível e definitivo é incorrecto e perigoso para todos os envolvidos numa investigação criminal.
A segunda hipótese de análise tem directamente a ver com a tentação de controlo por parte do poder político, especialmente do poder executivo, das empresas de comunicação social.  Não é intelectualmente honesto escrever, como alguns dos nosso principais comentadores têm feito nos últimos dias, que é original o hipotético desenho de operação que poderá ter sido executado por elementos da confiança do poder executivo em funções. Na verdade, a história democrática do nosso país desde 1974 é também uma história de permanente tentação e execução de controlo da comunicação social, realizada por todos os quadrantes políticos e alguns económicos. As tipologias para o conseguir são, quase sem excepção, as conhecidas, e os níveis de sucesso e insucesso nestes esforços são também de rápida recordação. Ao nível da propriedade, o financiamento directo ou indirecto, através de fundações, empresas ou bancos, nacionais e internacionais, do capital das empresas de comunicação social, bem como das respectivas receitas. Ao nível da hierarquia editorial, a cumplicidade, imposição ou colocação de chefias nos vários níveis das redacções. Ao nível do acesso, a sedução de jornalistas ou a negação de informações. Assim, deste modo, nasceram e morreram empresas de comunicação social, outras mudaram abruptamente de linha editorial, e, finalmente, outras mantiveram-se constantes porque o exercício da influência é de longa duração temporal e mais profissional. Do mesmo modo existe uma relação directa entre o exercício invisível da influência política na comunicação social e o ciclo "produtivo" do poder executivo, e a sua visibilidade súbita e crispada e o ciclo "problemático" deste último. O que poderá haver de novo na mais recente operação, que só poderá ser analisada quando todos os factos forem conhecidos, é alguma sofisticação conceptual, trazida pelo recurso velado a empresas com capital público e a actos de engenharia financeira, aparentemente anulada por um exercício primário de influência por parte dos condutores da referida operação. De qualquer modo, o que é de apontar mais uma vez é que os projectos de jornalismo em Portugal raramente conseguem escapar à asfixia de serem também projectos políticos, um cenário que apenas atormentaria um número apreciável de jornalistas, mas não a  totalidade, não se desse o caso de a informação pública ser vital para uma democracia saudável e um controlo do exercício dos mais diversos poderes. 
Uma linha de análise derradeira relaciona -se com a obsessão mediática por parte dos diversos poderes, mas especialmente do poder político, já que, porventura, é este que mais depende da opinião pública para a concretização dos seus objectivos. Neste ponto poderiam ser levantadas várias linhas de discussão, mas será talvez mais útil reduzir a análise apenas aquilo que poderemos chamar, à falta de melhor conceito, de círculo virtual. O que se observa repetidamente quando se passam alguns anos de contacto directo com os poderes constitucionais é o fechamento daqueles que ocupam as respectivas funções num círculo virtual fechado, criado pelos próprios, onde, basicamente, circulam apenas políticos, empresários, magistrados, jornalistas e, pontualmente, polícias. Uma mistura da incapacidade de lidar com os efeitos hipnóticos do controlo temporário do poder, uma tentação irresistível de estender a rede de influências e de a tornar dominante, e uma imaturidade intelectual que faz com se torne insuportável a realidade de que a democracia é um permanente confronto de "checks and balances", levam os membros deste círculo virtual a desenvolver obsessões, a conjurar cenários de conspiração e a desenvolver estratégias de eliminação que não pertencem e nada têm a ver com os interesses maioritários e decisivos da sociedade portuguesa. Na verdade, o mais importante de toda esta conjuntura é ser aparentemente nítido que o poder executivo considerou a questão mediática como prioritária na sua agenda.

20100201

Risco intenso para o escritor português

Circulam cada vez mais intensamente informações e algumas análises estratégicas sobre o que espera os escritores nos próximos anos. O pano de fundo para tanta incerteza é, obviamente, a revolução tecnológica em curso capaz de virar do avesso todo o processo de produção, e que ganhou algum aceleramento com a chegada do Ipad, a maravilha da Apple de potencial ainda não confirmado. Na verdade, como ainda esta semana John Lanchester escreve no "Financial Times" "ninguém sabe como isto vai funcionar". Várias equações, com fórmulas para as resolver ainda desconhecidas, estão a ser lançadas para as mesas dos envolvidos em todo o mundo, sendo que uma das mais importantes, e a única que tratamos neste texto, é a do cálculo das consequências da passagem do texto a produto digital. A equação poderá ser enunciada do seguinte modo: os leitores adoptam massivamente o texto em formato digital. Aplicando a mesma tendência cultural já estabilizada na música e no cinema, defendem que o produto deve ser gratuito. Aceitando estas duas variáveis como assentes e dominantes do mercado num futuro próximo, é necessário tentar desenhar as hipotéticas linhas mestras da revolução. Começando pelo fim da cadeia, uma extinção ou completa reinvenção das livrarias. No coração do processo de produção, uma diminuição radical do papel das gráficas e das distribuidoras. No centro da cadeia, uma desvalorização das editoras, e uma queda brutal das suas receitas, dando possivelmente origem a micro - empresas especializadas em serviços técnicos, como a detecção de novos talentos, a revisão e publicação nos vários formatos digitais dos textos, ou a "boutiques" com selo de qualidade, criado pelo valor no mercado dos autores que representam. Para o escritor, o cenário do futuro imediato parece ser ainda mais indistinto. À partida, com a eliminação do valor retido pela editora e pela distribuidora, poderá ver a sua margem de receita, que vai hoje dos 10 aos 36 por cento, chegar facilmente a números entre os 70 a 80 por cento. O problema é o de que estará completamente dependente do mercado, isto é do seu sucesso junto dos leitores. Neste ponto, é curioso notar algumas experiências, como os espectáculos em "tour" organizados por Malcolm Gladwell ou Lawrence Wright, que de algum modo tentam replicar o circuito dos concertos das bandas musicais, ou as campanhas de PR à volta de Dan Brown. Na verdade, para o escritor, as questões chave são duas. Se o texto for gratuito, como ganhar dinheiro com ele? E se o mercado ditar o texto, como fará um escritor que tem uma história para escrever, sabendo que esta não será acolhida pelo mainstream? Só pensar nas variáveis da equação é suficiente para perceber que dificilmente escaparemos à revolução num tempo muito próximo. O texto será cada vez mais um produto que será imposto ao mercado. Algumas intensas polémicas surgirão sobre as instâncias de validação que irão surgir para garantir a qualidade do texto ficcional, e o seu apoio através de algum tipo de mecenato. Num mercado pequeno, acorrentado e onde não se assumem as identidades da ficção como é o nosso, a incerteza será ainda mais acentuada, e o risco será muito intenso.