20091129

a toupeira contemporânea

A toupeira contemporânea usa métodos seculares, mas tem um percurso de conhecimento e habita uma geografia originais. Das suas precursoras, a toupeira contemporânea recuperou o gosto pelos subterrâneos, a faculdade de infiltrar e uma perdição quase obsessiva por ver, escutar e provocar de modo próximo do invisível. Mas tudo o resto no seu mapa genético e na sua carta de objectivos é novo. Três traços distinguem-se acima dos outros: a toupeira está ao serviço do Mal, trabalha sozinha e o seu território é digital, onde os inúmeros pontos das plataformas, os fluxos da redes e os cantos dos chats, sites e serviços lhe permitem uma errância sem fim fora do tempo e do espaço, garantindo-lhe uma caçada interminável. Hoje, a toupeira já não garante a si mesma uma invisibilidade intocável. Tem alguns perseguidores que foram adquirindo conhecimento sobre as suas investidas. Sabe-se que ela gosta de descobrir códigos, de vasculhar lugares privados, de obter lucro e fama. Mas a toupeira, sábia e experiente, segue sempre e penetra quase a vanguarda de todas as novas configurações dos caminhos digitais. Está dissimulada nas redes sociais, com um perfil inofensivo, à procura de amigos cujas partilhas de texto ou de imagem mostram a sua fragilidade a quem seduz com as palavras escolhidas, até as encontrar no mundo real, onde a caçada termina. Ou, habitando esse mundo já estabilizado dos lugares virtuais ou dos jogos online, domina os chats, ou seja os meios de contacto. E depois seduz. Para uma causa, para um acto terrorista, para adquirir valores financeiros. A toupeira contemporânea tem muitas idades e o seu perfil social não tem um padrão, a não ser no ponto em que de vários caminhos chegou a perita do mundo digital. Escondida no nick, na password, no isp e em outras barreiras, a toupeira contemporânea circula e raramente é detectada. Muito menos eliminada.     

20091114

tipologia familiar

o bom velho "The Economist" - que continua a ser dos poucos a aguentar o embate com a informação em plataforma virtual - andava já atrás do assunto há uns meses. Na edição de 31 de Outubro último aproveitou para fazer um "briefing" sólido sobre o tema. Segundo os dados reunidos a um nível global, pela primeira vez na história metade da humanidade terá apenas uma taxa de fertilidade de 2.1 ou menos, ou seja aquele número mágico que permite a reprodução das famílias mas não satura o planeta, que, juram os especialistas, precisa de espaço como nunca. Esta originalidade reprodutiva histórica confirma alguns dados, em relação ao mundo desenvolvido, e é fruto de realidades novas, em relação ao mundo em desenvolvimento. Quanto ao primeiro, vem, mais uma vez, confirmar a tese de que quanto mais ricas e desenvolvidas as sociedades, isto é quanto mais a sua estrutura humana é constituída pela classe média, mais a tendência é para os agregados terem apenas um ou dois filhos. Quanto ao segundo, é sem dúvida uma mudança de paradigma. O alcance real muito recente do estatuto de classe média, por um número significativo de pessoas, da Ásia a África, faz que com que a taxa de fertilidade esteja a diminuir violentamente, caminhando, dizem os dados, para que nos próximos anos se chegue à referida taxa de 2.1. Os padrões causais maioritários estão mais ou menos identificados. Quanto mais enriquece uma população, isto é quanto mais se aburguesa, menos filhos gera. As razões para que tal esteja a acontecer, e aconteça há muito no mundo desenvolvido, são fascinantes, e merecem estudos mais aprofundados. De um modo muito primário, os dados indicam que há uma extinção da necessidade de segurança gerada por muitos filhos, dado que o poder económico e de conhecimento garante essa mesma segurança, num nível vasto de campos, do laboral ao habitacional.  Por outro lado, as consequências são também, garantem mais uma vez os peritos, quase todas positivas. No mundo em desenvolvimento, é a primeira vez em muitos anos que as sociedades estão equilibradas - isto é a taxa de nascimentos e de idosos é inferior à da população activa - o que cria condições ideais para o desenvolvimento. No mundo desenvolvido, a taxa 2.1. mostra que os novos papéis sociais e produtivos das mulheres continuam a firmar - se no mundo social, caminhando para se constituírem como um paradigma definitivo, e que o abandono do mundo rural é praticamente definitivo. Na verdade, "The Economist", normalmente pouco dado a classificações mediáticas, chama - lhe "uma das mais dramáticas mudanças sociais da História" e parece ser esse o caso.  Era tempo, realmente. Menos filhos significa, por exemplo, mais recursos financeiros familiares para um investimento em melhor educação, maior qualidade de vida generalizada, maior exigência e responsabilidade profissional, devido à diminuição da mão de obra disponível, maior capacidade de aquisição de bens secundários. E, claro, não esquecendo uma verdadeira hipótese sólida de o que é ser mulher passar a ser para sempre outra coisa do que foi até aqui. No entanto, a um nível emocional, há qualquer coisa de verdadeiramente triste nesta tipologia familiar padronizada de 2.1. O padrão faz, ou fará, com que na realidade só uma ou, na melhor das hipóteses, duas vezes se viva esse milagre feliz que é acompanhar de perto e em detalhe, com os milhares de experiências que implica, o nascimento e crescimento de um jovem selvagem. Implica igualmente um estado de vigilância alto e definitivo, porque perder um é perder tudo. Finalmente, implica a previsibilidade científica incómoda de que os nossos 2.1 ficarão pelos seus 2.1. Parece definitivamente eliminada a possibilidade daquele caos alegre que só uma casa cheia provoca.

20091111

o afastamento do relvado

São indispensáveis muitos momentos marcantes no tempo para reconhecer o afastamento, especialmente quando são paixões que, entre outras marcas, construíram a nossa identidade. A actual quase dispensabilidade do futebol é uma operação sentimental que me surpreendeu, e de difícil reconhecimento. Na verdade, estamos a escrever sobre a destruição, ou a sua arrumação no passado, de um património intimo. Temos, sempre primeiro do que tudo, as inúmeras manhãs, tardes e noites gloriosas em campos desconhecidos - de escolas, bairros, ruas, clubes e sociedades - onde consegui imitar o Sepp Maier e o Thomas N´´Kono, brilhar no céu estrelado e colher os louros de quem via. Há momentos, jogos e episódios que ainda hoje recordo ao pormenor, gravados pelas minha camera pessoal. Parte desta felicidade, aliás, está ficcionada no conto "Protecção ao Ponta de Lança", incluído em "Cerco a um Duro". Nesses tempos, era tão importante jogar como ver e ler futebol. Havia magia nas páginas da "Bola" e do "Record", consumidas ao parágrafo, lentamente, e nos relatos radiofónicos de quarta - feira à noite, ouvidos debaixo da cama, entre lágrimas pelas derrotas europeias do Benfica nos anos 80. E, obviamente, foi este o tempo da chegada da imagem. Primeiro, de repente, um Roma - Benfica de quarta - feira à tarde, transmitido pela RTP. E uma final da taça de Inglaterra entre o Totenham e o Manchester City, com Ardilles e Villa a brilharem. E depois ainda a magia imortal do Espanha 82, com as defesas impossíveis de N´Kono, e a arte suprema do futebol por um sexteto impossível de repetir: Júnior -Cerezo-Falcão-Zico- Sócrates - Éder. E finalmente, o desespero do Europeu de 84, onde só faltou ambição às quinas. É um património iluminante que deveria ter ficado para sempre. Tentando racionalizar emoções, é possível escrever que o afastamento começa nos anos 90. Primeiro, com a destruição do Benfica, que perdura, tão eficaz que o clube nunca mais teve uma equipa, isto é um grupo de jogadores com alma para dar tudo. Depois, sem querer ser idealista, com a fixação definitiva da competição como um gigantesco negócio global, alimentado pelas televisões. Claro que, no meio destes tempos, houve momentos de recuperação da felicidade. Algumas finais dos Campeões Europeus, a campanha nacional em 2000. E, acima de tudo, a histórica campanha do FCP em 2004. Aliás, histórica porque deve ficar na história de portugal e do futebol. O que transformou um grupo de jogadores de qualidade, mas sem nenhuma super estrela, em campeões foi, sem dúvida, um treinador genial, mas principalmente a aplicação da qualidade decisiva dentro do campo: a garra, a alma, o trabalhar para a glória. Acho que nunca sofri tanto como nos dois Porto - Coruna, já que o resultado da final "estava escrito nas estrelas". Curiosamente, foi também em 2004 que o afastamento foi confirmado. Na verdade, era impossível perder a final do Europeu. Com uma campanha imaculada, uma Nação levantada, os adversários de joelhos, mostrou - se naquele jogo que o portugal estrutural é difícil de matar. Se o FCP foi a prova de que uma cultura nacional pode ser eliminada, a selecção foi a prova de que uma cultura nacional é muito resistente. O medo, o medo, o medo, e a resignação à incapacidade de dar tudo no momento decisivo. É ridículo, mas no intervalo desse jogo triste, só me lembrava que o Al Pacino devia ter sido chamado ao balneário das quinas.
E ali, para mim, confirmou - se o afastamento do relvado. Claro que não é uma decisão absoluta. Há sempre uma enorme alegria em ver os olhos de Essien quando as coisas correm mal ao Chelsea, ou os bailados do meio campo do Barcelona. Mas o futebol é hoje um jogo determinado pelo dinheiro, saturado pelas imagens, e onde contributo nacional é de segunda linha, por mais emoções plásticas que as televisões inventem.

20091110

os livros chegaram

Ocorreram episódios pessoais de livros que hoje parecem ridículos. Como chegar primeiro que os funcionários à "Foyle´s", em Londres, e ficar ainda quinze minutos ao frio e à chuva. Mas o horário do avião não permitia outra hipótese.  A "Foyle´s", aliás, foi, desde a sua descoberta, um templo provocador de problemas. Pisos e mais pisos de livros, todos eles sobre temas que interessavam. Descobrir, é este a palavra certa, autores, temas e edições. Como fazer a selecção? Trazer só livros de trabalho, ou só de ficção, ou só de viagem, ou tentar o impossível "mix"? Não é fácil, nada fácil na verdade, circular de metro entre Charing Cross e o aeroporto com demasiados quilos de papel na mão. De igual modo, é preciso não esquecer o primeiro contacto com a "Border´s", em Chicago, bem no fundo da "Magnificent Mille". Aquele conceito de meter os livros debaixo do braço, sentar numa mesa, pedir um café e um "brownie" e ficar por ali umas horas tinha, na altura, a classificação de magia. A fidelidade à "Border´s" provocou alguns erros, é preciso reconhecer. O sacrifício da "Foyle´s" em favor da "Border´s" londrina, em Oxford Street, foi sempre uma má opção. Caótica, suja, com opções "mainstream", não devia ter sido preferida. Mas estes foram apenas assaltos de "search and leave", existiram operações mais delicadas e demoradas. Porventura a mais complexa, e absurda, foi a derradeira em Chicago, no penúltimo dia de seis meses de bolsa na universidade. Um objectivo impossível: trazer todo o conhecimento básico de uma só vez. Regras de empenhamento: entrar na livraria da universidade e só sair de lá com a missão cumprida. Relatório final: perto de 30 livros, enviados pela UPS para Lisboa, e o dispêndio de 40 contos, em 1997. Parecem actos dementes, sem dúvida, mas havia argumentos para serem praticados. As nossas gloriosas livrarias, hoje cantadas como templos carinhosos do saber arruinados pela FNAC, levavam três meses para entregar o livro, e aumentavam três a cinco vezes o preço. E um dia chegou esse milagre chamado Amazon, a que se seguiu, recentemente o Book Depository. Não é imediato encontrar palavras para contar a habitação desse milagre. A busca era, e continua a ser, o melhor dos passos. Percorrer os campos, descobrir autores, identificar títulos, juntar oos objectos do desejo num cesto que é o nosso. Depois, a angústia da escolha. Eliminar, em nome da realidade financeira. E, terceiro passo, voltar ao mundo real português. A passagem a perito da distribuição postal nacional, especialmente desde que o último elo da cadeia, o carteiro, passou a recibo verde. Conhecer o circuito todo. Encomendar ao domingo para chegar à quarta-feira, evitar épocas festivas. Controlar o carteiro manhoso que não traz encomendas porque são pesadas, e o seu colega que mete o postal de aviso na caixa do correio, no lugar de tocar à campainha, porque ganha tempo. Ser amigo do boss do CDP ( Centro de Distribuição Postal) da área, para conseguir entrega imediata e segura. E, deste modo, matar a geografia, e o mercado nacional fechado. Os livros chegaram. O tremendo prazer de terem saído de um armazém no outro lado do mundo e estarem aqui agora nas minhas mãos. O primeiro contacto, o melhor. A capa, a contracapa, os agradecimentos, o índice, a bibliografia. A tomada de lugar na pilha. Não há muitos momentos como aquele em que os livros chegaram.

20091105

o guerrilheiro intraduzível e a Igbo cosmopolita

o texto mais recente de José Luandino Vieira, "O Livro dos Guerrilheiros" (Caminho), assenta mais uma vez no seu território de escolha, a luta de guerrilha dos angolanos contra o Estado português, entre 1961 e 1974, mas tem uma ambição particular. Luandino leva para um pouco mais longe do que nos seus livros anteriores o esforço de encontrar um lugar específico na língua portuguesa para o imaginário angolano e para os modos como este pode ser aplicado num texto em português. O imaginário do guerrilheiro, do angolano, a sua forma intima de pensar, e a aplicação destes em linguagem, desafiam Luandino a uma reinvenção do português, não só na escolha das palavras, onde os termos em quimbundo namoram com os termos em português, mas especialmente na construção da narrativa, isto é do modo como frases, trechos, descrições e narrações são fixadas no papel. Há todo um outro português que constrói a história, que corresponde exactamente ao modo como o angolano molda o português à sua cultura. No entanto, perceber a riqueza deste trabalho narrativo de Luandino só é possível para quem conheça bem os angolanos. Chimamanda Ngozi Adichie tem uma estratégia completamente distinta. Nigeriana, pertencente à etnia Igbo, também ela tem vindo a desenterrar, ou a não deixar enterrar, pedaços importantes da história recente do seu país. Em "Half of a Yellow Sun",Chimamanda conta a guerra do Biafra, a partir das experiências pessoais de alguns dos seus familiares. Ao contrário de Luandino, Chimamanda só tem ambições ao nível da espessura da sua história, desvalorizando o modo de a escrever. Emigrada nos EUA, onde estudou e agora ensina escrita criativa, Chimamanda escreve em inglês, e o seu estilo narrativo cumpre os padrões literários clássicos ocidentais.  Assim, temos em confronto dois modos de trazer a memória para o presente e de a partilhar através da literatura. O texto de Luandino é uma obra de ourivesaria literária de nível superior, mas é praticamente intraduzível e de leitura difícil para estranhos à realidade angolana. A memória da luta de libertação continuará a ser um pedaço de vida conhecido de uma minoria em extinção. O texto de Chimamanda não luta com as regras estabelecidas da forma e da linguagem, mas foi um êxito mundial. A guerra do Biafra pertence hoje à história mais conhecida do mundo. 

20091101

identificando o outro

A presença do terrorismo jihadista na Europa provoca um desafio extremo à nossa capacidade de identificar o outro. É um teste que está já para além da nossa resistência a aceitar e a comunicar com a minoria, como tão bem teoriza Appadurai no seu livro mais recente. O problema na identificação do outro - muçulmano, árabe ou asiático, com referências éticas, culturais e sociais distantes - começa logo na aproximação. Este outro é um ser de códigos e territórios distantes ou desconhecidos. Fala outra língua, todos os seus actos estão submetidos a uma cultura estranha, percorre circuitos que nos são invisíveis, que não conseguimos experimentar, ou onde não nos deixam entrar. Na verdade, comemos "indiano" mas nunca vamos à cozinha, entramos nas lojas do eixo Martim Moniz - Castelo, mas não vamos beber chá aos quartos das pensões adjacentes, e muito menos temos acesso às mesquitas oficiais e clandestinas. Por outras palavras, a menos que participemos num acontecimento fora do normal, não temos lá muitos pontos de contacto. A partir desta aproximação deficiente, a nossa identificação - que fazemos a partir dos nossos códigos e das nossas leituras da realidade - tem todas as propriedades para ser incorrecta. O outro, muçulmano árabe ou asiático não residente na Europa, move -se em círculos clandestinos, e aprendeu a proteger - se. Quase certamente, está sempre à beira da ilegalidade, não tem residência autorizada nem contrato de trabalho, e comete mesmo crimes, como a burla com cartões de crédito ou o "casamento branco" com uma cidadã comunitária.Os padrões que outros com mais experiência estabeleceram mostram - nos que o outro, quando cumpre os requisitos acima mencionados, ou é um criminoso em circulação global na União Europeia, ou membro de uma célula terrorista que pacientemente vai entrelaçando os fios necessários a uma operação. Mas, na verdade, o outro, agente de ilegalidades e crimes, pode ser apenas um de nós. Um ser solitário em terras estranhas obrigado a executar actos que condena porque está à procura de uma vida decente para si e para os seus. Neste contexto que hoje vivemos, identificar o outro distante, o muçulmano emigrante, é uma tarefa fascinante para o investigador académico, mas sensível e grave para o investigador de segurança.