20091111

o afastamento do relvado

São indispensáveis muitos momentos marcantes no tempo para reconhecer o afastamento, especialmente quando são paixões que, entre outras marcas, construíram a nossa identidade. A actual quase dispensabilidade do futebol é uma operação sentimental que me surpreendeu, e de difícil reconhecimento. Na verdade, estamos a escrever sobre a destruição, ou a sua arrumação no passado, de um património intimo. Temos, sempre primeiro do que tudo, as inúmeras manhãs, tardes e noites gloriosas em campos desconhecidos - de escolas, bairros, ruas, clubes e sociedades - onde consegui imitar o Sepp Maier e o Thomas N´´Kono, brilhar no céu estrelado e colher os louros de quem via. Há momentos, jogos e episódios que ainda hoje recordo ao pormenor, gravados pelas minha camera pessoal. Parte desta felicidade, aliás, está ficcionada no conto "Protecção ao Ponta de Lança", incluído em "Cerco a um Duro". Nesses tempos, era tão importante jogar como ver e ler futebol. Havia magia nas páginas da "Bola" e do "Record", consumidas ao parágrafo, lentamente, e nos relatos radiofónicos de quarta - feira à noite, ouvidos debaixo da cama, entre lágrimas pelas derrotas europeias do Benfica nos anos 80. E, obviamente, foi este o tempo da chegada da imagem. Primeiro, de repente, um Roma - Benfica de quarta - feira à tarde, transmitido pela RTP. E uma final da taça de Inglaterra entre o Totenham e o Manchester City, com Ardilles e Villa a brilharem. E depois ainda a magia imortal do Espanha 82, com as defesas impossíveis de N´Kono, e a arte suprema do futebol por um sexteto impossível de repetir: Júnior -Cerezo-Falcão-Zico- Sócrates - Éder. E finalmente, o desespero do Europeu de 84, onde só faltou ambição às quinas. É um património iluminante que deveria ter ficado para sempre. Tentando racionalizar emoções, é possível escrever que o afastamento começa nos anos 90. Primeiro, com a destruição do Benfica, que perdura, tão eficaz que o clube nunca mais teve uma equipa, isto é um grupo de jogadores com alma para dar tudo. Depois, sem querer ser idealista, com a fixação definitiva da competição como um gigantesco negócio global, alimentado pelas televisões. Claro que, no meio destes tempos, houve momentos de recuperação da felicidade. Algumas finais dos Campeões Europeus, a campanha nacional em 2000. E, acima de tudo, a histórica campanha do FCP em 2004. Aliás, histórica porque deve ficar na história de portugal e do futebol. O que transformou um grupo de jogadores de qualidade, mas sem nenhuma super estrela, em campeões foi, sem dúvida, um treinador genial, mas principalmente a aplicação da qualidade decisiva dentro do campo: a garra, a alma, o trabalhar para a glória. Acho que nunca sofri tanto como nos dois Porto - Coruna, já que o resultado da final "estava escrito nas estrelas". Curiosamente, foi também em 2004 que o afastamento foi confirmado. Na verdade, era impossível perder a final do Europeu. Com uma campanha imaculada, uma Nação levantada, os adversários de joelhos, mostrou - se naquele jogo que o portugal estrutural é difícil de matar. Se o FCP foi a prova de que uma cultura nacional pode ser eliminada, a selecção foi a prova de que uma cultura nacional é muito resistente. O medo, o medo, o medo, e a resignação à incapacidade de dar tudo no momento decisivo. É ridículo, mas no intervalo desse jogo triste, só me lembrava que o Al Pacino devia ter sido chamado ao balneário das quinas.
E ali, para mim, confirmou - se o afastamento do relvado. Claro que não é uma decisão absoluta. Há sempre uma enorme alegria em ver os olhos de Essien quando as coisas correm mal ao Chelsea, ou os bailados do meio campo do Barcelona. Mas o futebol é hoje um jogo determinado pelo dinheiro, saturado pelas imagens, e onde contributo nacional é de segunda linha, por mais emoções plásticas que as televisões inventem.

2 comentários:

  1. amigo, partilho plenamente deste teu sentimento. No entanto tantos anos de masoquismo benfiquista finalmente deram em algo. Até podem n vir a canhar o campeonato mas a qualidade de jogo (e golo) q se tem visto é ao nivel do melhor Benfica de sempre (dos tempos modernos, claro. No tempo do Eusébio não se defendia, por isso n conta para a comparação)

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  2. concordo, mas os últimos anos causaram estragos muito fortes, penso.

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