Infelizmente, dois dias depois do primeiro acto de reacção policial a uma radicalização do protesto civico, continuamos sem ter conhecimento de alguns dados essenciais para podermos dominar e decidir o que está em causa. Do acontecimento de quarta-feira, e das suas ramificações anteriores e principalmente posteriores, podemos isolar, pelo menos, três dimensões importantes: a materialização pontual da revolta radical, o exercício da autoridade e da restauração da ordem, e o conhecimento conseguido pelos profissionais jornalistas. Está em causa também uma quarta dimensão, o grau de maturidade dos portugueses em relação ao que neste texto se discute, que tentaremos também abordar. As notas que se seguem procuram recortar algum conhecimento sobre estas quatro dimensões.
A questão fundamental a que os manifestantes radicais têm de responder é qual é o seu ideário e a sua prática. Na verdade, está há já muito tempo ultrapassado o limite de tempo que lhes permitia uma indefinição entre o oportunismo espacial e mediático para acções radicais espontâneas, as manifestações, e a sua completa inexistência. O que está em causa é a revelação da sua identidade ideológica e da sua praxis. Assim, o que todos pretendemos saber é se são apenas vários conjuntos atomizados de membros vagos de ideologias e de organizações em rede, que vão do Black Bok aos estivadores com lideranças em claques de futebol, ou se conseguiram erguer uma estrutura, ou estruturas, com fundamento ideológico e um plano estruturado. Deste modo, obviamente, queremos saber se pelo menos têm uma racionalidade, por mais condenável que esta seja, ou se neles tudo começa e se esgota na expressão pontual de violência gratuíta. Neste campo, queremos também perceber o que pensa a esquerda parlamentar e sindical sobre os protagonistas desta via radical. Na verdade, se atentarmos na entrevista que Francisco Louçã deu há três semanas na Visão, ou na entrevista que Manuel Carvalho da Silva deu ao Jornal de Negócios no passado dia 9, entre outros testemunhos, vemos que existe uma tentativa de construção de pontes. Esta revelação de identidade é fundamental para todos entendermos, a começar nos instrumentos do Estado e a acabar no vulgar cidadão, se estamos perante criminosos de delito comum, ou executores de subversão e terrorismo, tal como estes estão tipificados na legislação portuguesa.
Os autores do exercício da autoridade e da ordem, de entre os quais salientamos o Governo e as polícias, estão encarcerados no segredo e no amadorismo mediático. O primeiro ponto a reter, na questão do segredo, é que por motivos inexplicáveis não partilham o facto de que o Governo impôs um principio estratégico de risco, o de desde 15 de Setembro ter transmitido aos corpos de polícia a ordem de não impedir a violação da ordem pública, em nome do não aumento do clima de desespero e revolta social. O risco desta estratégia, que é estudado há muito nas academias de polícia e no meio académico, materializou-se, já que, em dois meses, os manifestantes radicais foram assumindo a mensagem de que a polícia não iria nunca reagir. Agora, ultrapassada a estreita linha vermelha, a tendência é que à acção violenta do corpo da ordem, os radicais respondam com maior, mais impresvísivel e mais atomizada radicalização.
O segredo dos constitucionalmente detentores do exercício da autoridade e da ordem estende-se à não partilha pública dos dados que possuem sobre o fenómeno. Existem várias perguntas a que têm de responder. A primeira é a de sabermos se SIS, PJ e a Unidade de Informações da PSP fizeram ou não o seu trabalho, e se possuem ou não informação relevante sobre os protagonistas da revolta radical. O que está em causa, primeiro, é percebermos a razão pela qual o exercício de isolamento de alguns elementos radicais foi feito apenas durante a manifestação, e não antes, como é realizado em todo o Ocidente, em fenómenos com esta tipologia. O que está também em causa, em segundo lugar, é mais uma vez sabermos se estamos perante estruturas, ou perante uma revolta inorgânica, atomizada e pontual. Se o cenário for este último, então a carga e acção de detenção generalizada que se seguiu policiais têm um fundamento, que deve ser comunicado publicamente.
A acrescentar ao acima anotado, está o problema do amadorismo mediático do Governo e da PSP. Antes de tudo o mais, adoptam uma táctica reactiva, isto é comentam depois do acontecimento. Depois, fazem-no com soundbytes abstractos. Classificar, como o fez o Primeiro-ministro e o Ministro da Administração Interna, de adequada e proporcional a carga e a acção de busca e detenção, é perder desde logo o controlo da mensagem.
A única estratégia possível do Governo é, antes do mais, perceber que está envolvido num problema que não conseguirá resolver. Por razões culturais e emocionais, a maioria dos cidadãos estará sempre contra o exercício da violência por parte da polícia. No entanto, este cenário não limita a execução de uma táctica activa. Esta passa, prioridade um, como já foi referido, pela divulgação dos dados que possui sobre os manifestantes radicais. É o conhecimento que permite o julgamento de cada cidadão. Mas passa também, prioridade paralela à primeira, pela passagem de conhecimento aos jornalistas do essencial sobre a teoria e a prática de corpos especiais como são o CI da PSP e o GIOP da GNR. Muito há a transmitir neste campo, porque são corpos com uma missão extremamente complexa, mas neste espaço gostaríamos de salientar apenas que aquilo que ao cidadão sem conhecimento parece impressionante, o contacto violento com manifestantes sem discriminação de idade ou sexo, ou a perseguição aparentemente aleatória, são, efectivamente, tácticas planeadas e as únicas possíveis para restaurar a ordem e garantir a segurança de todos, principalmente daqueles que executam a missão. Por exemplo, uma secção do CI que neutraliza um quadrante não pode ignorar uma mulher, porque esta poderá lançar um cocktail molotov nas suas costas.
A terceira dimensão que pretendemos abordar neste texto sumário é a do conhecimento conseguido pelos jornalistas. Da análise do publicado, podemos detectar dois problemas maiores, o da cumplicidade e o da negligência. Quanto ao primeiro, não é aceitável que um jornalista trabalhe sobre um fenómeno, e, simultaneamente, revele as suas opções ideológicas, morais e de cidadania numa rede social. O profissional antes de ser jornalista é cidadão, e se está perante um fenómeno onde sabe que os seu valores vão influenciar o seu trabalho, deve revelar objecção de consciência e recusar o trabalho.
O segundo problema é ainda mais grave, e, neste campo, os jornalistas caminham lado a lado com o governo e a polícia, ou seja, são meros espectadores reactivos, limitando-se a coleccionar e a reproduzir momentos impressionistas. São meras testemunhas sem acesso aos níveis reservados, e não procuram sequer adquirir conhecimento sobre os vários contextos existentes. É já muito tarde, mas existe ainda uma janela temporal, para recuperarem o tempo perdido, e procurarem executar a sua missão. Antes do mais, devem planear o seu esforço de investigação, onde tudo assenta, e dividirem o fenómeno nas suas várias dimensões, para, pelo menos, ganharem conhecimento sobre uma delas. Não é assim tão dificil, se forem profissionais. Sobre uma das dimensões principais, a do exercício da ordem, consegue-se acesso através da insistência. Sobre a outra, os manifestantes radicais, consegue-se acesso, na maior parte dos casos, através da exploração das redes pessoais, já que aqueles pertencem à sua geração, ao seu meio social e cultural, e aos seus circuitos.
No meio de toda esta complexa questão, está o nosso grau de maturidade em relação à fractura das habituais normas e regras de comportamento social e público, como são os actos radicais de revolta. Impressionaram-me, na análise dos comentários nos OCS e nas redes sociais de cidadãos comuns e dos cidadãos com notoriedade profissional e social, duas questões. A primeira é a total inocência, como a expressa por alguns de que não contavam ser agredidos, ou viram em perigo entes queridos. Há todo um acumular de conhecimento de senso comum em sociedades habituadas à violência social que parece não existir em Portugal. É preciso ter a absoluta noção de que estar numa zona de conflito implica um risco e um perigo que se pode materializar. Mas o que me impressiona mais é a contínua e indignada reinvidicação de imunidade. Cada cidadão, e cada militante, decide em sua própria consciência qual é o seu lugar na sociedade e na revolta. É este um dos milagres da democracia. Mas a democracia tem fronteiras fixadas por todos, as leis e normas aprovadas, e cada um tem de saber lidar com o facto de que os seus actos têm consequências. Por outras palavras, não é aceitável estar presente ou actuar e não querer pagar o preço.
O cenário nacional para os próximos meses é de tensão e conflito. Todos o sabemos e sentimos. Não há nada que alguém possa fazer para eliminar esta instalação mental e social. No entanto, há todo um enorme trabalho a fazer por aqueles que querem ou têm de estar na linha da frente. O primeiro passo desse trabalho é ter a plena consciência do que é gerado por cada acto pensado e praticado. O segundo passo é o de que executores da autoridade e da ordem, manifestantes radicais e jornalistas percebam que a obtenção e partilha de conheicmento contribui decisivamente para a cidadania e segurança de cada e de todos os cidadãos.
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