No mesmo momento em que Portugal parece estar cada vez mais uniformizado, ao nível das ideias e do imaginário, pedaços marcantes da memória e acção social colectiva das últimas décadas, coincidentes no tempo, parecem estar a percorrer caminhos distintos. Estes pedaços dizem todos respeito ao período 1940 - 1980, um tempo onde a história nacional portuguesa acelerou. Dois dos pedaços que gostava de tratar aqui são a presença portuguesa em África e a importância da esquerda radical nos contextos político e social. A África portuguesa foi, até há muito pouco tempo um imenso território histórico vazio no imaginário e conhecimento dos portugueses nascidos depois de 1980, com excepção da Guerra Colonial, claro. Na verdade, toda a complexa presença portuguesa em terras africanas, exercida ao longo dos séculos, parece ter desaparecido de repente, como se nunca tivesse existido uma ligação. Assim, nos últimos anos, têm acontecido duas coisas distintas. Por um lado, o afastamento entre a sociedade portuguesa maioritária e os países africanos, fazem com que realmente um fosso definitivo tenha sido construído. Não há hoje uma ligação construída todos os dias, por múltiplos laços afectivos e sociais. Mas é no terreno desta separação, que começam a surgir as provas das ligações profundas e antigas. Refiro - me às, finalmente, publicadas investigações históricas, como a de Cláudia Castelo, que, na senda do trabalho singular de Maria Emília Madeira Santos, trazem finalmente à partilha os dados possíveis para a decifração desse enigma polifacetado que é o dos portugueses africanos. Neste campo, o da experiência africana portuguesa, será preciso esperar ainda algumas décadas, para vislumbrar qual será o contributo dos filhos de africanos nascidos em Portugal, e o dos portugueses que agora chegam a África. Por outras palavras, será talvez nas próximas décadas que poderão ser mais claramente definidas a importância de África para os portugueses e, simultaneamente, a quantidade de memória que será partilhada.
Ao mesmo tempo, a esquerda radical, que teve em Portugal quando muito 15 anos de acção, é outro enigma do qual ainda não sabemos quanta memória será conhecida. A uma visibilidade enorme de alguns dos seus membros corresponde, inversamente, um quase desconhecimento das suas práticas e até, em alguns casos, ideias. À medida que alguns dos seus elementos mais importantes vão morrendo ou envelhecendo, não têm surgido documentos de conhecimento, excepto aqueles produzidos pela imprensa, ou algum investigador mais solitário, como é o caso do jovem Miguel Cardina. Sobre este tema, o enigma continua suspenso, e é também extremamente curioso acompanhar o que trarão as próximas décadas no campo do conhecimento, se um quase deserto, se novas zonas de claridade. Para o regresso da memória, isto é para um conhecimento livre e científico do passado que permita a entrega de uma memória livre de prévios juízos ideológicos e marcas de poder exercidos em sombra, são necessárias várias condições, que muito poucas vezes são reunidas por aqui. Antes do mais, um investimento financeiro e logístico sério no trabalho dos investigadores. Depois, a eliminação de uma particularidade muito portuguesa. De facto, para uma concentração unicamente científica nos temas que importa investigar para que a memória conhecida não seja antes editada, terá que antes existir uma eliminação das linhas mestras ideológicas e intelectuais que ainda hoje continuam a determinar, em cumplicidade silenciosa com inúmeros círculos de poder com património investido nesses temas, o trabalho de investigação, impondo temas, proibindo outros, jogando assim um papel decisivo no que se conhece e no que vai sendo deixado na bruma do tempo. Com estas condições reunidas, a memória deixará de ter temas sagrados e temas tabu, e aquilo que hoje somos será conhecido de forma muito mais profunda.
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