20100522

alguns caminhos da memória

No mesmo momento em que Portugal parece estar cada vez mais uniformizado, ao nível das ideias e do imaginário, pedaços marcantes da memória e acção social colectiva das últimas décadas, coincidentes no tempo, parecem estar a percorrer caminhos distintos. Estes pedaços dizem todos respeito ao período 1940 - 1980, um tempo onde a história nacional portuguesa acelerou. Dois dos pedaços que gostava de tratar aqui são a presença portuguesa em África e a importância da esquerda radical nos contextos político e social. A África portuguesa foi, até há muito pouco tempo um imenso território histórico vazio no imaginário e conhecimento dos portugueses nascidos depois de 1980, com excepção da Guerra Colonial, claro. Na verdade, toda a complexa presença portuguesa em terras africanas, exercida ao longo dos séculos, parece ter desaparecido de repente, como se nunca tivesse existido uma ligação. Assim, nos últimos anos, têm acontecido duas coisas distintas. Por um lado, o afastamento entre a sociedade portuguesa maioritária e os países africanos, fazem com que realmente um fosso definitivo tenha sido construído. Não há hoje uma ligação construída todos os dias, por múltiplos laços afectivos e sociais. Mas é no terreno desta separação, que começam a surgir as provas das ligações profundas e antigas. Refiro - me às, finalmente, publicadas investigações históricas, como a de Cláudia Castelo, que, na senda do trabalho singular de Maria Emília Madeira Santos, trazem finalmente à partilha os dados possíveis para a decifração desse enigma polifacetado que é o dos portugueses africanos. Neste campo, o da experiência africana portuguesa, será preciso esperar ainda algumas décadas, para vislumbrar qual será o contributo dos filhos de africanos nascidos em Portugal, e o dos portugueses que agora chegam a África. Por outras palavras, será talvez nas próximas décadas que poderão ser mais claramente definidas a importância de África para os portugueses e, simultaneamente, a quantidade de memória que será partilhada.
 Ao mesmo tempo, a esquerda radical, que teve em Portugal quando muito 15 anos de acção, é outro enigma do qual ainda não sabemos quanta memória será conhecida. A uma visibilidade enorme de alguns dos seus membros corresponde, inversamente, um quase desconhecimento das suas práticas e até, em alguns casos, ideias. À medida que alguns dos seus elementos mais importantes vão morrendo ou envelhecendo, não têm surgido documentos de conhecimento, excepto aqueles produzidos pela imprensa, ou algum investigador mais solitário, como é o caso do jovem Miguel Cardina. Sobre este tema, o enigma continua suspenso, e é também extremamente curioso acompanhar o que trarão as próximas décadas no campo do conhecimento, se um quase deserto, se novas zonas de claridade. Para o regresso da memória, isto é para um conhecimento livre e científico do passado que permita a entrega de uma memória livre de prévios juízos ideológicos e marcas de poder exercidos em sombra, são necessárias várias condições, que muito poucas vezes são reunidas por aqui. Antes do mais, um investimento financeiro e logístico sério no trabalho dos investigadores. Depois, a eliminação de uma particularidade muito portuguesa. De facto, para uma concentração unicamente científica nos temas que importa investigar para que a memória conhecida não seja antes editada, terá que antes existir uma eliminação das linhas mestras ideológicas e intelectuais que ainda hoje continuam a determinar, em cumplicidade silenciosa com inúmeros círculos de poder com património investido nesses temas, o trabalho de investigação, impondo temas, proibindo outros, jogando assim um papel decisivo no que se conhece e no que vai sendo deixado na bruma do tempo. Com estas condições reunidas, a memória deixará de ter temas sagrados e temas tabu, e aquilo que hoje somos será conhecido de forma muito mais profunda.

20100507

Decifrar Rodrigues

Decifrar a lógica dos dois actos do deputado Ricardo Rodrigues - o do furto dos gravadores e o da explicação pública dos seus motivos - obriga a procurar indicadores singulares. Na verdade, o primeiro indicador a seleccionar é o de que os actos são tão extraordinários que escapam à maior parte das referências racionais com que estamos habituados a lidar. Por outras palavras, poderão ficar para sempre sem explicação, tirando aquela que o autor dos actos construir para si e para o espaço público. O contexto é o de uma entrevista de uma revista semanal de informação, a "Sábado", cuja objectivo é confrontar o entrevistado com questões incómodas da sua vida pessoal e profissional. A entrevista é uma das secções simbólicas da revista, existindo há bastante tempo. A linha editorial da entrevista foi cumprida com Ricardo Rodrigues. O deputado reagiu mal, como acontece com a maior parte dos entrevistados neste formato, e terminou abruptamente a entrevista, levando consigo os gravadores dos jornalistas onde tinha sido gravado todo o conteúdo do acto. O único indicador racional que conseguimos isolar é o de que ao roubar os gravadores, o deputado tentou eliminar a entrevista. Tentou apagar definitivamente a conversa onde tinha participado. Tentou reescrever o passado imediato. É fascinante, sem dúvida. Mas é, para começar a enumerar as razões do acto ser impensável a partir de indicadores que conhecemos, impossível que o deputado tenha pensado deste modo, porque o mundo social a que pertence não o permite. Reescrever o passado e o presente, durante um período de tempo de média duração, é apenas possível num regime totalitário, onde o poder em exercício consegue realizar o controlo dos meios tecnológicos, da difusão da mensagem, do comportamento dos cidadãos, e de todos os "checks and balances", nomeadamente os que aplicam a Lei.  O deputado pertence à Assembleia da República, o sinal mais claro de que em Portugal existem um regime constitucional democrático. Deste modo, podem apenas ser levantadas duas hipóteses, ambas, novamente, a partir de indicadores anormais. Na primeira, o deputado, quando confrontado com uma situação limite, aquelas escassas onde verdadeiramente nos revelamos, mostra que não é capaz de lidar com condições básicas democráticas. Na segunda, o deputado mostra que se acha acima ou que é capaz de eliminar as condições básicas democráticas. O segundo acto, o da partilha pública das razões que levaram à execução do primeiro acto, obriga à procura de indicadores ainda mais singulares. Em verdade, qualquer que seja o rastilho pessoal do deputado que o levou a actuar, não há nada para partilhar, a não ser um pedido de desculpa e a confirmação pessoal de entrada num período de afastamento de funções públicas. O deputado preferiu construir uma justificação para o seu acto, fundamentada numa resposta emocional a uma violência psicológica intensa exercida pelos jornalistas. É extremamente difícil analisar este argumento, e qualquer indicador a que possamos recorrer é demasiado singular, de novo. A violência psicológica faz parte do quotidiano pessoal e especialmente profissional de todos nós, estando longe de nos garantir o direito de retaliar fora das regras. Assim, ao avançar com este argumento, o deputado parece mostrar que acredita que as suas razões podem ser acolhidas pelos cidadãos, ou que acredita que o caos em que está transformado o espaço público nacional é condição suficiente para que a mensagem que está a espalhar consiga eliminar ou atenuar o acto que cometeu. Qualquer destas hipóteses é verdadeiramente singular.