20100117

o elo e o trabalho ficcional com referências

O elo em Avatar, o filme de Cameron, é desde já uma das maiores criações ficcionais de sempre, e a sua matéria permite arriscar dizer que o será também para sempre. O elo, que explique -se aos que ainda não viram o filme é a ponta da cauda dos membros do povo Na´vi, que lhes permite uma união física e espiritual com os animais e as plantas, tem um poder simbólico duplo. É ao mesmo tempo uma aplicação feliz em matéria do desejo do homem comunicar e estar em união com a natureza e a espiritualidade, e, simultaneamente, um novo membro orgânico que permite visualizar até onde o homem pode ir, utilizando a bioengenharia e a biologia sintética na manipulação do seu dna, para ganhar novas capacidades que o construam como melhor ser. O elo, sendo a plataforma que permite o fluxo espiritual e ecológico, mas sendo matéria que pode ser observada, transforma - se assim num poderoso objecto que dificilmente sairá da memória dos que o viram, e que virá certamente a ser invocado no futuro de mil e uma maneiras. Mas o elo é apenas a criação ficcional chave de um filme que recupera e manipula, com o atrevimento próprio de que só um mestre de Hollywood é capaz, um número considerável de referências a que muito poucos são insensíveis, dado que fazem parte daquilo que observam na sua contemporaniedade ou do seu património vindo da juventude. Neste campo, um exercício interessante a fazer é o de conseguir saber se Cameron e a sua equipa trabalharam com as referências com o objectivo de criar um objecto novo, no sentido de levar essas referências para a construção de uma história radicalmente original, ou se apenas as utilizaram como património universal que sabem que é com o objectivo de garantir o sucesso do seu produto. Esta é, claro, uma questão para a qual não temos resposta. Podemos, no entanto, ter uma avaliação pessoal da eficácia do trabalho com referências. Porventura, a maior desilusão é o trabalho em torno do ser digital que dá o nome ao filme, ou seja o Avatar. Na verdade, Cameron encontra um modo de fazer a ligação entre ser humano e a sua réplica digital, mas o modo como o faz, através de uma câmara que consegue transportar a matéria e o imaterial de um corpo para outro, faz lembrar demasiado a criogenia e a ficção científica dos anos 70. Para mais, neste ponto, a utilização escassa de cenários e paisagens digitais é também um reforço da desilusão. Já noutra dimensão do trabalho com referências, o contexto civilizacional do povo Na´vi é seguro, mas também limitado. Cameron, em algumas entrevistas, fala de que partiu das velhas ficções de Rice Burroughs na selva africana e de "danças com lobos", o épico de Costner, mas, na verdade, na cultura e no comportamento dos Na´vi apenas consigo ver os índios mitológicos norte - americanos, como os apache, a que é dado um toque espiritual africano, nas grandes cerimónias colectivas de invocação do poder da natureza. Aqui faltou a Cameron um toque de genialidade: a construção efectiva de um Outro, de uma nova identidade que pudesse ser observada. Porventura, a maior desilusão é o emprego de referências para a construção do conflito. Três aspectos devem ser aqui mencionados. A chamada ao argumento da obtenção de minérios raros é interessante, mas Avatar não mostra o horrendo do trabalho nas minas, de que a realidade que todos os dias se observa na República Democrática do Congo é um exemplo. As cenas de batalha são primárias e estereotipadas, e este teria sido um campo onde valeria a pena investir, já que o modo de fazer a guerra mudou tremendamente nas últimas décadas. Mas, sem dúvida, o maior desencanto é com a escolha e visualização da tecnologia bélica contemporânea. Cameron está absolutamente certo em trazer para a filmagem a robótica e o emprego da tecnologia e da máquina no campo de batalha, em lugar do homem, mas as armas que apresenta são rudimentares e quase primitivas, quando abundam, na literatura técnica e ficcional, especialmente nos videojogos, exemplos muito interessantes de novas ferramentas de guerra. Apesar de todo este emprego deficiente das referências escolhidas, na minha opinião, Avatar é um filme extraordinário, que me tocou de um modo imenso. Porquê? Creio que as razões são perfeitamente lineares. Mesmo para um ser pouco espiritual como eu, a linha condutora simbólica da história, a mensagem espiritual e ecológica, é muito forte. Mas o factor decisivo, o que realmente é tocante, é a extrema beleza visual de todo o filme. Neste ponto, antes dos mais, Cameron provou que as novas ferramentas tecnológicas de imagem e edição permitem fazer um cinema novo. Mas, o mais importante é que a contratação de uma bióloga para criar o ecossistema de Pandora foi a melhor decisão do realizador. Toda a estrela, toda a sua paisagem e flora, e todo o povo que a habita, são imensamente belos, e a esse efeito encantador é impossível escapar. 

20100111

impossibilidade de protecção

"A Estrada", escrito por Cormac McCarthy em 2006, e um filme agora estreado em território nacional, tem por tema uma angústia sempre secreta, pessoal e devastadora, aquela que um pai traz em si a partir do momento em que sente que a qualquer momento pode deixar de conseguir proteger o seu filho. Não será arriscado escrever que o quotidiano de Mccarthy contribuiu bastante para a escrita desta história. O autor americano tem, apesar da sua idade avançada, um filho criança. Por outro lado, o cenário de um mundo pós - apocalipse, onde se desenrola a narrativa, é um dos mais debatidos no meio científico onde o escritor está inserido, o do Santa Fé Institute. Mas, na verdade, o que o livro conta é a dor trazida pela descoberta da impossibilidade de proteger um filho ainda indefeso, e a tentativa desesperada de eliminar esta certeza. Perder um filho ou ver sofrer um filho, conta - nos a realidade e a ficção demasiadas vezes, é uma experiência que destrói tudo, até a tentativa de a contar. Um pai enfrentar a sua partida com o filho ao lado é uma experiência distinta, onde existem, pelo menos, dois pontos insuportáveis. O primeiro tem a ver com a descoberta, feita num quotidiano onde a todo o momento se encontram os olhos da criança. O segundo tem a ver com o tempo, já que se o desaparecimento não é imediato, todos os dias começa um novo dia onde se sabe que num dia próximo o filho vai ficar sozinho e indefeso. Transformar este medo e este desespero numa narrativa que pode ser partilhada é uma tarefa quase impossível, daí "A Estrada" ser um livro maior.